sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Um bêbado atrás do prêmio

O poeta Antonio Cícero e o compositor Nelson Mota falavam de literatura e música para a platéia do I Encontro de Escritores, que reuniu em Natal mais de 30 autores. Só havia um lugar na sala, justamente na primeira fila. Pois foi ali que o mendigo resolveu se sentar, ao lado de Marcelino Freire, Prêmio Jabuti 2006. O cheiro que exalava vinha de dentro e de fora. Pela boca, saía um bafo de quem ingerira um coquetel de várias bebidas; do corpo, emanava o efeito de quem provavelmente passara algumas semanas sem tomar banho e sem trocar de roupa. “Ele fedia a cachaça, cerveja, conhaque, a tudo”, revelou mais tarde Marcelino, que disfarçou e fingiu ir ao banheiro. Ninguém estava agüentando. O ar refrigerado espalhava o mau cheiro pela redondeza.

De vez em quando, o bebum falava em voz alta coisas meio incompreensíveis que terminavam com a palavra “prêmio”. Cícero não sabia se dava ouvidos àquelas inesperadas intervenções. Um mal estar instalou-se no recinto. Decididamente, era preciso retirar dali o bêbado inconveniente. Mas como? A solução óbvia seria chamar os seguranças. Porém, ele não parecia disposto a sair pacificamente. Com certeza ia espernear, e no dia seguinte algum jornal tomaria sua defesa: “mendigo discriminado no encontro de escritores”. O evento, que ia se encerrar na noite seguinte e transcorria impecavelmente, poderia ser manchado pelo incidente.

Foi quando um dos organizadores teve a genial idéia. Chegou no ouvido do bêbado e segredou: “tou aqui com dez reais para você, mas só entrego lá fora”. O bêbado hesitou, a oferta era tentadora. “Mas e o meu prêmio?”, alegou. Se não era um intelectual, era pelo menos informado sobre a vida literária. Sabia que se distribuíam prêmios, e estava atrás do seu. Quem sabe, um Jabuti? O seu vizinho de cadeira não tinha recebido um? “O prêmio você recebe depois”, foi a resposta. Meio cambaleante, mas sem protestar, em silêncio, o bêbado retirou-se, para alívio e surpresa gerais.

Na manhã seguinte, no café, não se falava de outra coisa. Sobravam elogios para o sábio organizador. “Que idéia engenhosa!”. Até que Marcelino resolveu atormentar o cronista Inácio Loyola Brandão, conferencista daquela noite, e, viajando, imaginamos alguns desdobramentos. O mendigo teria sido visto conclamando os colegas de atividade para uma ação mais solidária. “Se vocês forem lá, eles pagam para sair. Ontem ganhei dez pau; hoje é capaz de dobrarem”. Já se sentindo líder do grupo, pensou melhor e resolveu criar um movimento de âmbito nacional. Assim, enviaria representantes a cada evento de livros – feira, salão, festa, bienal – cobrando uma comissão de 20% sobre o faturamento. Uma espécie de mensalinho.

As instruções eram de quem conhece o mercado. “Num basta tá bêbado, tem que feder”, advertia, “e pra feder não precisa estar mulambento. Eu, por exemplo, tava vestido direito. Se tu chegar mal ajambrado, os caras te barram na entrada”. Ele recomendava não tumultuar. “Basta sentar e espalhar o fedor. Escritor não expulsa mendigo à força, principalmente se for preto”. Agora se dirigia a cada um, hierarquizando as tarefas conforme o cheiro. “Você, ‘Boca do lixo’, vai pra Flipe, em Paraty. Lá tem gringo, e eles podem pagar em dólar ou euro”. Todos prestavam atenção: “Gambá”, “Cospe erda”, “Zé Catinga”, “Goela de esgoto”. No canto, só quem parecia desanimado era o velho bebum “Num fede nem cheira”. O líder olhou pra ele com pena e consolou: “Com esse nome, você vai ter que esperar”.

À noite, por via das dúvidas, Loyola Brandão começou sua palestra avisando que tinha R$ 120 no bolso. Mas não precisou usar. Os mendigos estavam muito ocupados com a preparação das viagens para os próximos encontros.

Texto de Zuenir Ventura

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