sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Reflexões sobre a Paz Interior

Chagdud Tulku Rinpoche (1930-2002) pertencia à última geração de mestres que herdaram os tesouros dos ensinamentos e métodos Vajrayana. Filho de Dawa Drolma, uma das mais célebres mulheres lamas deste século, abade do secular monastério de Chagdud Gonpa no Tibet, Rinpoche viveu os primeiros vinte anos de exílio, depois da invasão chinesa de 1959, na Índia e no Nepal. Lá serviu à comunidade tibetana como lama, médico e promotor das artes.

Em 1979, chegou aos Estados Unidos. Quatro anos depois, Rinpoche criou a Chagdud Gonpa Foundation, hoje com centros também no Canadá, Suíça e Brasil, onde residia em Três Coroas (RS).
-------------------------------------------------------------------------

No nosso mundo estressante e corrido, cada um está procurando a paz interior. Como podemos alcançá-la?

Uma resposta a essa pergunta realmente requer um ensaio inteiro. Mas basicamente, eu diria que a paz não se deve a circunstâncias externas. Se não temos paz interior, não é porque há algo errado com o mundo exterior. A paz interior é um subproduto direto da própria mente da pessoa, não importa quais condições externas possam existir. Todas as coisas dependem das motivações internas da pessoa. A paz surge agora, na nossa realidade presente, como um resultado direto de todas as ações que tenhamos tomado no passado e de acordo com a nossa motivação interna. Se experimentamos a paz agora, é um resultado de toda a bondade, bons trabalhos e ações compassivas que realizamos anteriormente. E se agora nos falta paz interior, se agora estamos tendo dificuldades, deve-se diretamente a termos sido difíceis antes. Isto é, nossas intenções e ações impuras voltarão para nós como a falta de paz interna.

Mas mesmo que tenhamos atrás de nós uma acumulação de comportamento não-pacífico, não é impossível mudar isto. A própria mente tem uma capacidade de mudança intrínseca a ela. O que quer que uma pessoa pense é o que se traduz na realidade da pessoa. Portanto, se a pessoa deseja ter condições cheias de paz, afortunadas, conducentes, a chave de tudo é um coração puro, as aspirações altruístas da própria pessoa, sua motivação pura. As suas ações e as ações dos outros podem não ser tão diferentes; a diferença está no coração, na motivação pelo que você faz. E é isto que faz toda a diferença no resultado de suas ações no mundo. Você deve ter a pureza do seu próprio coração, a pureza de sua própria postura e das intenções em relação aos outros e ao mundo que o rodeia. Essa é a causa-semente de toda a paz interior.

------------------------------------------------------------------------
Como trazemos a meditação para as nossas vidas diárias?

Podemos tomar como exemplos os Oitenta Grandes Mahasiddhas, ou seres extraordinariamente realizados, que viveram no início da história do buddhismo na Índia. Esses oitenta grandes seres não se tornaram grandes deixando todas as coisas do para trás. Ao invés disso, eles trouxeram os princípios básicos da prática espiritual – a pureza de coração e a presença da mente – às suas ações no mundo comum.

Por exemplo, Tilopa, que foi um dos maiores praticantes da Índia, passou sua vida fazendo óleo de semente de gergelim. Naquele tempo não havia nenhuma tecnologia fantástica, nem prensas poderosas. A única maneira de fazer óleo de semente de gergelim era triturar as sementes com a mão. Então, conforme Tilopa triturava, dia e noite, ele cultivava dentro de si um coração cada vez mais puro, e na sua mente cultivava atenção unidirecionada cada vez maior. Ele não deixava sua mente pular como uma pulga. E foi por fazer essa prática diária que ele atingiu sua grande realização.

Na história do buddhismo, e especialmente no Tibet, havia muitos chefes de família, famílias, homens e mulheres que também praticaram a tradição de incorporar, na vida diária, os princípios da atenção e da pureza de coração, de maneira a atingir a iluminação.

Através dessa prática, dentro de suas famílias, dentro de suas ocupações, eles tiveram a aptidão para superar as limitações da morte e realizar um estado que é chamado “além da vida e da morte”, ou realização imutável.

Tudo que ela requer, embora soe simples, é que de um lado se nutra a pureza de coração, ou motivação altruísta, e que se corrija e erradique a motivação impura. E, por outro lado, que se permita que a mente descanse na sua própria verdade, na sua própria natureza fundamental ou presença pura. E portanto, de momento a momento na vida diária, há uma atenção constante tanto para a pureza de coração quanto para o descanso na natureza pura da mente. É assim que se pode incorporar o caminho espiritual na vida diária da pessoa.

------------------------------------------------------------------------
Como podemos competir num mundo materialista, que algumas vezes é muito mesquinho, e ainda sermos amáveis e compassivos com todas as pessoas?

Não quero falar apenas sobre princípios, então deixe-me contar uma história. Na Índia havia um rei muito famoso, Indrabhuti, que era muito poderoso e muito rico, como todos os reis. Ainda assim, mesmo com todas as suas responsabilidades e impedimentos mundanos, ele teve aptidão para atingir a iluminação. A razão era porque o seu propósito não era, de nenhum modo, egoísta. Seu foco não era apenas o seu próprio melhoramento. Ao invés disso, ele usou de todos os seus recursos, poder e influência de maneira a servir constantemente às necessidades dos outros. Através disto, ele conseguiu efetuar o mais nobre dos feitos, que é realizar verdadeiramente a ausência de ego.

Portanto, para aqueles de nós, particularmente em nosso mundo, que temos tanto coisa – poder pessoal, riqueza, status e responsabilidades –, é similar. Um modo de praticar o caminho espiritual é desistir de tudo, deixar todos aqueles que você conhece e ir sentar numa caverna. Mas essa não é a única maneira de fazer isso. Os indivíduos podem, enquanto agem como zeladores de sua riqueza e de sua influência, trabalhar pelo melhoramento dos outros e sempre criar uma pureza cada vez maior no seu altruísmo, em seu serviço pelos outros, usando quaisquer recursos que tenham.

Riqueza, poder, conhecimento, inteligência, educação – todas essas coisas são ornamentos que são a prova verdadeira da bondade prévia de alguém. Portanto, agora, tendo o fruto desta bondade prévia, a pessoa deve usá-los com o objetivo de ajudar os outros. Então, isso age como um padrão que causará muito benefício ao existir no mundo, tanto para si bem quanto para os outros.

Eu perdi meu país. Vivi a vida de um refugiado. Como refugiado, recebi a assistência de muitas pessoas generosas, deste país e de outros, que me ajudaram e me deram abrigo. É muito beneficente agir deste modo, como guardião para as outras pessoas e para seu melhoramento. Basicamente, em seu trabalho no mundo, você deve ser honesto, deve cultivar a pureza de intenção e de coração. E então, vagarosamente fazer, o que você faz. Vá adiante e faça o que tem de fazer. O sucesso em ter atingido sua meta deve estar baseado em não ter causado dano a ninguém. Se você sempre mantiver em mente que não quer causar dano a ninguém, e que a sua verdadeira aspiração a longo prazo é estar apto a beneficiar os outros, então o seu trabalho no mundo será muito benéfico.

------------------------------------------------------------------------
A meditação é possível no estilo de vida moderno de hoje?

A meditação é independente de qual século ou cultura você vive, seja ela antiga ou moderna. O que importa na meditação é o processo de olhar constantemente para trás e de se avaliar — avaliar e verificar sua própria mente. Agora, o modo como normalmente operamos nossas vidas é o oposto, tendemos a olhar para fora da janela. Olhamos para fora da janela e dizemos “Ó, ele é uma pessoa boa” ou “Ela é uma pessoa boa” ou “Isso é bom” ou “Isso é ruim”. Estamos sempre verificando, olhando e criando impressões do mundo fora de nós.

A meditação, por outro lado, é usar a tela de sua mente como um espelho, onde você olha de volta para você mesmo, ao invés de olhar para fora, julgando os outros. Você olha para você. Se você usa um espelho, você pode ver se o seu rosto está sujo e se o seu cabelo está uma bagunça, e então você pode limpá-los e penteá-los. Com a meditação você olha, e onde quer que você veja um mau pensamento ou uma má ação, então você realmente tenta mudar isso dentro de si – como lavar o seu próprio rosto.

Mudar a mente não acontece de uma vez. Mas com constante atenção a ela, lentamente, lentamente, a mente muda. É uma questão de repetição, de novo, de novo e de novo, olhando para si e se corrigindo, corrigindo as motivações impróprias, os sentimentos ásperos. E então, mais do que isto, você se olha e tenta verdadeiramente acentuar e abraçar as qualidades positivas. Você cultiva a bondade de sua própria parte. Você não julga todo o tempo que isso e aquilo é bom ou ruim, mas verifica repetidamente a si mesmo.

Então, volta-se ao ponto mencionado numa pergunta anterior – é uma questão de permitir que a sua mente relaxe em sua própria natureza verdadeira e de criar as intenções adequadas dentro de si. Olhamos para dentro, corrigimos e ajustamos. Deste modo, tudo é passível de mudança; é perfeitamente possível mudar a mente. Antiga ou moderna, isto não é tão importante.

------------------------------------------------------------------------
A meditação tem algo em comum com todas as religiões, tais como Católica, Protestante, Judaica?

É bem fácil responder essa questão. Freqüentemente, dificuldades surgem no caminho ao nomearmos ou conceitualizarmos algo. Por exemplo, pode haver uma discussão entre um americano e um tibetano sobre qual é a mais brilhante fonte de luz no céu. Um americano poderia dizer “Bem, certamente é o Sol, você não pode achar uma fonte de luz melhor do que o Sol”, e o tibetano diria, “Bem, não, o Sol não é a maior fonte de luz no céu, Nyima é a melhor fonte.” Agora eles estão falando da mesma coisa, mas estão usando palavras diferentes. Normalmente, são apenas as limitações nas palavras e nomes que causam conflitos e diferenças entre as religiões, quando na verdade cada um está falando sobre a mesma fonte perfeita de luz no céu. É simplesmente uma questão de com qual tradição você sente uma conexão, que tradição invoca em você a tendência à oração, à auto-correção e à pureza de coração.

Cada tradição tem uma mensagem; cada tradição propõe-se a lhe reerguer, a reduzir o seu sofrimento e miséria, e a ajudar a experienciar mais felicidade na sua condição humana, até mesmo a experiência de felicidade total. Basicamente, se você tomar cada religião e examiná-la, nos seus princípios mais básicos você descobrirá que elas recomendam ajudar os outros ao invés de prejudicá-los. Esses são os princípios operantes básicos que você encontrará em todas religiões. Eles são exemplificados pelos grandes líderes de cada tradição. Seguindo seus exemplos, podemos criar dentro de nós mesmos a grande harmonia que estes próprios mestres alcançaram. Isso significa reduzir as nossas próprias faltas e aumentar ilimitadamente nosso amor e compaixão.

Toda mensagem espiritual é como um remédio. Nem todas as pessoas podem ser curadas pelo mesmo médico ou pelo mesmo remédio, não importa o quão grande o médico seja ou o quão fino seja o remédio. Devemos nos focar na cura e tomar o que funcione para nós. Não dá certo pensar, “Bem, sou um americano, tomarei apenas remédio americano”, ou “Sou japonês e irei tomar apenas remédio japonês”. Uma pessoa deve buscar qualquer remédio, qualquer médico, que cause a cura de verdade.

A cura significa obter ou revelar a sabedoria interna que é a verdade absoluta, o estado puro sem princípio da verdadeira natureza de alguém. Significa revelar a pureza da mente e a compaixão ilimitada da mente. Qualquer método que verdadeiramente revele a verdade do seu próprio estado de ser, esse é o remédio que você precisar tomar. A pessoa que lhe dá este método é o médico ao qual você precisar ser fiel.

------------------------------------------------------------------------
Se há um pequeno conselho que você poderia dar a qualquer pessoa hoje, qual seria?

Eu diria que é cultivar a sua própria pureza de coração. Comece por reconhecer o quão afortunado você é – todos nós somos. Nós temos corpos humanos preciosos. Esses corpos são extraordinários, com os quais podemos nos relacionar com nossas famílias, nossas comunidades, nossa sociedade. Temos circunstâncias afortunadas; não estamos famintos, pobres ou indigentes. Realmente, somos tremendamente afortunados. E se olharmos ao redor, veremos que há outros que certamente não têm este tipo de fortuna, que não têm estas condições auspiciosas em suas vidas ou que não levam os estilos de vida que levamos. E uma vez que se reflita sobre isto, então você é impelido a perguntar, “Como posso, então, ajudar aqueles não tão afortunados quanto eu? O que posso fazer para que experimentem menos dificuldade, menos sofrimento?”

Ao redor do mundo, há pessoas que sofrem continuamente pela guerra, doença, fome, pobreza. Se você se puser no lugar delas, você entenderá como é ter estes tipos de condições e então, naturalmente, a compaixão fluirá do seu coração. Com esta compaixão, você põe seus pés no chão e percebe o quão afortunado você é na sua própria vida.

Reconhecer a sua própria fortuna é o primeiro passo na paz interior, o primeiro passo para cultivar o contentamento e a felicidade. Mais ainda, este contentamento tem dentro de si as qualidades intrínsecas da grande mente, a mente da iluminação. Através da realização da grande mente, pode-se beneficiar verdadeiramente outros incontáveis seres. O grande erudito e santo buddhista, Atisha, passou sua vida inteira estudando e meditando diligentemente, e chegou à conclusão de que tudo que o Buddha ensinou recai na mesma coisa, que é a bondade de coração. Esta é a essência do caminho espiritual, da maturidade espiritual. Os métodos que você encontra dentro de todas as tradições espirituais apontam e conduzem a mente ao realce da pureza de coração.

Quando você cultiva a compaixão e a bondade amorosa, você cria uma no seu coração uma jóia que realiza desejos. Você não pode comprar isso. Você não a obterá no topo de uma alta montanha. Está apenas no seu próprio coração.

------------------------------------------------------------------------
(Este livreto foi elaborado a partir de perguntas feitas a Chagdud Tulku Rinpoche e traduzidas por Lama Tsering Everest durante Uma Tarde pela Paz Interior, evento que teve lugar em Napa Valley, Califórnia, em Abril de 1990).

Fonte: dharmanet

Nenhum comentário:

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails