sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

O Direito ao Silêncio


A vida urbana, sabemos, produz níveis de ruído muito acima do desejável, tão maiores quanto a concentração de pessoas por metro quadrado. A poluição sonora, compreensível até certos limites que escapam ao controle de cada cidadão, vem alcançando índices intoleráveis. Coletei alguns exemplos que podem servir de argumentos para angariar alguns cúmplices numa possível campanha de direito ao silêncio.

Criou-se uma "necessidade musical" absurda, tirada não sei de quais reivindicações populares, que obriga todas as pessoas a ouvirem música (ou na sua falta, qualquer tipo de som) onde quer que elas se encontrem, sem que haja qualquer avaliação de conveniência.

Desista de levar um livro para ser lido na sala de espera de um consultório médico. Comum até há pouco tempo, a chamada música ambiente, geralmente orquestrada, tinha a finalidade de relaxar as pessoas antes de uma consulta médica e não interferia na leitura. Essa prática "evoluiu" para os aparelhos de TV, ligados em tempo integral. E lá fica você "ligado" em abomináveis desenhos de super-heróis japoneses e outras bobagens, sem direito a escolha.

Desista também de convidar os amigos para um bate-papo num bar ou restaurante. Pelo volume do som, os proprietários desses estabelecimentos partem do pressuposto de que as pessoas ali vão apenas para se afogar nos copos ou se empanturrar de comida.

Nos congestionamentos, desista daquela música relaxante, no rádio do seu carro. Sempre haverá a seu lado um motorista com um poderoso alto-falante-móvel acionado, transmitindo gratuitamente o som do mais recente grupo de pagode, cujo mérito principal é o vocalista ter a língua presa. Ou você relaxa e ouve o rádio vizinho ou então, "dança".

Outra mostra da "insanidade sonora" que assola nossos trópicos: semana passada, triste pela morte de uma pessoa querida, compareço a uma missa de sétimo dia. Desejoso, talvez, de ampliar o escasso número de fiéis, o padre não deixou por menos e convocou dois jovens, de vozes adolescentes e esganiçadas, munidos de um violão eletrificado e um tambor, estupidamente mal tocados, que entoavam modernosas canções, em ritmo de escola de samba.

Incoerentemente, o sacerdote pedia aos presentes para não conversarem naquele recinto sagrado, onde a única profanação permitida era aquela música horrível que em nada condizia com a ocasião.

Por muito menos, aos quinze anos de idade, deixei de frequentar a Igreja Católica Apostólica Romana, na qual fui educada. A missa deixou de ser rezada em latim e terminou o mistério. A fé só existia pela magia do rito e pelo fascínio da pompa litúrgica. Se perdurasse, minha fé, hoje, certamente não resistiria à vulgaridade explícita. A começar pelos templos modernos, que mais parecem danceterias, tão distantes da grandiosidade daqueles mais antigos que, se não tinham o poder de salvar os homens, pelo menos colaboravam para elevá-los a uma esfera mais transcendental do espírito, ao som de músicas de Bach, Haydn ou Haendel, executadas em instrumentos mais adequados ao ambiente, como cravo e órgão.

O homem perdeu de vez a chance de usufruir do silêncio. Não confundir com o mutismo, atitude fechada às revelações e aos gestos de paixão, mas o silêncio de ouvir a si próprio e ao universo cósmico.

Tudo bem. Você, que ainda possui alguma consciência do perigo da epidemia de surdez que assola a humanidade, chega em casa, tira os sapatos, afrouxa as roupas mais apertadas e põe pra tocar um CD com os concertos brandenburgueses de Bach. Não dá. O vizinho liga o seu potente aparelho de som e, sem a menor cerimônia, estremece as paredes de sua casa com um dos últimos "sucessos" que, além da pobreza poética das letras, primam pelo mau gosto e grosseria. Até há bem pouco tempo, seriam simplesmente classificadas de pornográficas mas, agora, em plena era pós-tudo, encantam as crianças que, alto e bom som, as cantam na escola, ao mesmo tempo que se requebram, abaixando-se até tocar na "boquinha da garrafa". Tristes trópicos tristes, travestidos de apócrifa alegria, sem o legítimo direito ao silêncio.

Dalila Teles Veras


Dalila (Isabel Agrela) Teles Veras, natural do Funchal, Ilha da Madeira, Portugal, (1946), emigrou com a família para o Brasil (São Paulo, Capital), em 1957. Em 1972, após seu casamento com o advogado e escritor Valdecirio Teles Veras, radicou-se em Santo André, cidade onde nasceram suas três filhas, Carolina, Isabela e Alice, na qual reside até hoje.

Publicou mais de uma dezena de livros, nos gêneros poesia, crônica e o livro "Minudências", um diário do ano de 1999. Participou de inúmeras antologias no país e no exterior. Possui trabalhos (artigos, ensaios e textos literários) publicados em jornais e revistas de todo o país e do exterior. (
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