quarta-feira, 5 de novembro de 2008

O Quintal

Quase todas as noites Silvia gostava de sentar na beirada da janela do quarto, colocar as pernas para fora e ficar olhando a enorme mangueira que cobria todo o perímetro do seu campo de visão. Havia algo de mágico naquela gigantesca árvore quando a luz da tarde fenecia e aquele híbrido de dia e noite tomava tudo de azul-escuro. Poucos minutos e a árvore de frutos suculentos se transformava em sombra negra, entremeada por feixes laranja de luz da rua ao lado.
Ela gostava de imaginar que aquilo era um navio, um elefante ou um castelo, cada dia era uma coisa, e a coisa vinha surgindo, sem saber bem o que era, até pouco antes de, de fato ser. Às vezes quase era, e, no segundo seguinte, a certeza de não ser.
Numa dessas noites não ventava e a mangueira permanecia absoluta em seu caule. Suas pequeninas folhas estáticas pareciam milhões de beija-flores, naquele momento em que param no ar entre uma flor e outra, ou pelo menos foi assim que Silvia viu. Sem vento a brincadeira não tinha tanta graça; naquela noite ela queria ver um cardume, mas foi beija-flores o que lhe pareceu. Sendo assim, a menina preferiu deitar-se e fechar os olhos, pois desse jeito poderia ver o que quisesse.
Um pouco de concentração e o cardume apareceu, não de sombra, nem de árvore, mas de peixes reluzentes, brilhantes, pontos prateados por baixo de água cristalina num dia de sol franco. No mar havia também ela mesma, correndo, fazendo a água espalhar e molhando tudo em volta, mesmo o que já era molhado. Agora eram duas Silvias, uma às gargalhadas na água e a outra sentada na areia, sorrindo e se divertindo com a alegria daquele momento.
A Silvia da areia levantou delicadamente e bateu a areia das pernas livrando-se dos grãos que a pintavam de branco. Colocou o chapéu de palha, sorriu e iniciou sua caminhada. A Silvia da água finalmente se viu duas, e parou de brincar. Ela quase chamou a outra, mas o que dizer? Enquanto Silvia caminhava, a outra Silvia temia perguntar para onde. Porque se o destino fosse algum lugar que não desejasse ir, seria preciso acompanhar. Ou não? Na dúvida melhor calar, e assim as duas Silvias se separaram, uma pra casa, outra pra vida.
A Silvia da água voltou e, antes mesmo de tomar banho, prometeu-se que nunca mais pensaria na Silvia que partiu. Porque de nada adiantava pensar na outra, ou para onde haveria partido naquele último dia de praia. Talvez estivessem juntas novamente, mas, o melhor seria não contar com a possibilidade. Como não teve coragem para perguntar, Silvia conformou-se com a incerteza, aprendeu a viver com ela. A dúvida se acostuma, emudece, e um dia torna-se um quadro na parede do corredor, um daqueles que a gente vê mas não enxerga, de tanto que passou.
Os anos seguiram, Silvia cresceu, e a menina que olhava a mangueira no quintal foi atrás dos elefantes e castelos do mundo real. Estudou, namorou, viajou, não quis se casar. Largou a cidade natal, ganhou o mundo e aprendeu a perseguir os sonhos, mesmo os que ela ainda não havia tido muito tempo para sonhar. Quando queria ver um navio, ou o que sua imaginação teimasse em inventar, ela ia lá e via. Mas nem sempre era exatamente o que esperava, porque não havia mais mangueira, nem janela, nem jardim.
Havia uma mulher plena, e parte de crescer é justamente não saber direito o que se quer. Nessa busca Silvia estudou jornalismo, formou-se, namorou Pedro, Ricardo, Maurício, Paulo, Eric, Daniel, e outros, que o tempo se encarregou de apagar. Viajou para a França, a Itália, a Espanha, a Inglaterra, a Índia, a China, mas não o Japão. Isso sem contar o Brasil inteiro, parte da América Latina, e tantos outros lugares que nem cabe citar. Não quis se casar. Depois de jornalista foi intérprete, professora, trabalhou numa ONG, estudou culinária, fez curso de cinema, jardinagem, yoga, budismo, vendedora, nadadora, costureira, garçonete, aprendeu de tudo um pouco, cada coisa ao seu tempo, e foram muitas.
Houve chance para dizer e desdizer, para ser incoerente, maldita, amada, dependente, provedora, mulher e menina. Depois de todos esses anos a imaginação deu lugar a memória, de tanto que Silvia viveu. O navio, o castelo, o elefante, todos tinham data, cor e nome, ela não precisava imaginar, ela conhecia. A única coisa que Silvia ainda pretendia conhecer era o destino da outra Silvia, a que saiu da praia caminhando, de quem nunca mais se soube.
De onde morava até sua cidade foi um longo percurso. A casa onde viveu não existia mais, no entanto, a árvore continuava lá. O lugar agora era uma praça, onde balanços, gangorras, bancos e mesas de xadrez circundavam a grande mangueira. Silvia esperou àquela hora do dia e posicionou-se exatamente onde seria a janela de seu antigo quarto. O vento balançou as folhas, a noite sobrepôs a tarde, os feixes laranja de luz começaram a contornar a sombra, e aquele momento de quase ser, chegou.
Silvia fechou os olhos, abriu os de novo, e sentiu a iminência de ver algo, exatamente como sempre foi. Só que dessa vez, ao invés da imagem revelada, o momento seguinte era um que ela não conhecia, onde tudo que se via era apenas a árvore. As lágrimas começaram a brotar-lhe, junto com uma imensa tristeza e um medo que ela nunca tinha experimentado. Abraçada ao tronco da mangueira, Silvia soluçava feito criança, em nada lembrava a mulher que havia sido. Aquela dúvida adormecida ficou maior que a árvore e recobrou a força de anos de contenção: ela precisava desesperadamente saber da outra Silvia. Aos poucos o medo foi passando, o choro secou e, só assim, foi possível se dar conta de que a resposta para essa pergunta sempre esteve com ela.
Postado por Bruno Medina em 03 de Agosto de 2007
http://colunas.g1.com.br/instanteposterior/page/14/

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