Foto de Bernardo e Tomas Medina
Ah, ouvir mazurcas de Chopin num velho bar, domingo de manhã!
Depois sair pelas ruas, entrar pelos jardins e falar com as crianças.
Olhar as flores, ver os bondes passarem cheios de gente, e encostado no rosto das casas, sorrir…
Saber que o céu está em cima.
Saber que os olhos estão perfeitos e que as mãos estão perfeitas.
Saber que os ouvidos estão perfeitos. Passar pela Igreja.
Ver as pessoas rindo. Ver os namorados cheios de ilusões.
Sair andando à toa entre as plantas e os animais.
Ver as árvores verdes do jardim. Lembrar das horas mais apagadas.
Por toda parte sentir o segredo das coisas vivas.
Entrar por caminhos ignorados, sair por caminhos ignorados.
Ver gente diferente de nós nas janelas das casas, nas calçadas, nas quitandas.
Ver gente conversando na esquina, falando de coisas ruidosas.
Ver gente discutindo comércio, futebol e contando anedotas.
Ver homens esquecidos da vida, enchendo as praças, enchendo as travessas.
Girar os braços, respirar o ar fresco, lembrar dos parentes.
Lembrar da cidade onde se nasceu, com inocência, e rir sozinho.
Rir de coisas passadas. Ter saudade de pureza.
Lembrar de músicas, de bailes, de namoradas que a gente já teve.
Lembrar de lugares que a gente já andou e de coisas que a gente já viu.
Lembrar de viagens que a gente já fez e de amigos que ficaram longe.
Lembrar dos amigos que estão próximos e das conversas com eles.
Saber que a gente tem amigos de fato!
Tirar uma folha de arvore, ir mastigando, sentir os ventos pelo rosto…
Sentir o sol. Gostar de ver as coisas todas.
Gostar de estar ali caminhando. Gostar dessa emoção tão cheia de riquezas íntimas.
Pensar nos livros que a gente já leu, nas alegrias dos livros lidos.
Pensar nas horas vagas, nas horas passadas lendo poesias de Anto.
Lembrar dos poetas e imaginar a vida deles muito triste.
Imaginar a cara deles como de anjos. Pensar em Rimbaud, na sua fuga, na sua adolescência, nos seus cabelos de ouro.
Não ter idéia de voltar para casa. Lembrar que a gente, afinal de contas, está vivendo muito bem e é uma criatura até feliz. Ficar admirado.
Descobrir que não nos falta nada. Dar um suspiro bom de alívio, olhar com ternura a criação e ver-se pago de tudo.
Descobrir que, afinal de contas, não se possui nenhuma queixa.
Que está sem nenhuma tristeza para dizer no momento.
Lembrar que não sente fome e que os olhos estão perfeitos.
Para falar a verdade, sentir-se quite com a vida.
Lembrar de amigos. Recordar um por um. Acompanhá-los na vida.
Como estão longe, meu Deus! Um aqui. Outro lá. Tão distantes …
Que fez deste o destino? E daquele? Quase vai se esquecendo do rosto de um … Tanto tempo!
Ter vontade de escrever para todos os amigos.
Ter vontade de lhes contar a vida até o momento presente.
Pensar em encontrá-los de novo. Pensar em reuni-los em torno de uma mesa.
Uma mesa qualquer em um lugar que a gente ainda não escolheu.
Conversar com todos eles. Rir, cantar, recordar os dias idos.
Dar uma olhada na infância de cada um. Aquele era magro, Venício…
Aquele outro era gordo, Abelardo … Aquele outro era triste.
Ah, não esquecer jamais deste último, porque era um menino triste.
Como andarão agora? Naturalmente, mais velhos.
Talvez não conhecerei alguns. Naturalmente, mais senhores de si,
Imaginar todos eles com ternura. Pensar nos mais fracos, naqueles, naturalmente, para quem o mundo deve ter sido menos bom.
Pensar que eles já vêm. Abrir os braços.
Procurar descobrir, no mundo que nos envolve, alguma voz que tenha acento parecido.
Algum andar que lembre o andar longínquo de algum deles…
Ah, como é bom a gente ter infância!
Como é bom a gente ter nascido numa pequena cidade banhada por um rio.
Como é bom a gente ter jogado futebol no Porto de Dona Emília, no Largo da Matriz.
E se lembrar disso agora que já tantos anos são passados.
Como é bom a gente ter tido infância e poder lembrar-se dela.
E trazer uma saudade muito esquisita escondida no coração.
Como é bom a gente ter deixado a pequena terra em que nasceu.
Ter fugido para uma cidade maior, conhecer outras vidas.
Como é bom chegar a este ponto de olhar em torno
E se sentir maior e mais orgulhoso porque conhece outras vidas…
Como é bom se lembrar da viagem, dos primeiros dias na cidade.
Da primeira vez que olhou o mar, da impressão de atordoamento.
Como é bom olhar para aquelas bandas e depois comparar.
Ver que está tão diferente, e que já sabe tantas novidades…
Como é bom ter vindo de tão longe, estar agora caminhando,
Pensando e espiando no meio de pessoas desconhecidas
Como é bom achar o mudo esquisito por isso, muito esquisito mesmo.
E depois sorrir levemente para ele com os seus mistérios …
Que coisa maravilhosa, exclamar. Que mundo maravilhoso, exclamar.
Como tudo é tão belo, tão cheio de encantos!
Olhar para todos os lados, olhar para as coisas mais pequenas, e descobrir em todas uma razão de beleza.
Agradecer a Deus, que a gente ainda não sabe amar direito,
A harmonia que a gente sente, vê e ouve.
A beleza que a gente vê saindo das rosas, a dor saindo das feridas.
Agradecer tanta coisa que a gente não pode acreditar que esteja acontecendo.
Lembrar de certas passagens. Fechar os olhos para ver no tempo.
Sentir a claridade do sol, espalmar os dedos, cofiar os bigodes,
Lembrar que tinha saído de casa sem destino, que passara num bar, que ouvira uma mazurca,
E agora estava ali, muito perdidamente lembrando coisas bobas de sua pequena vida.
MANOEL DE BARROS, O POETA QUE VEIO DO CHÃO
Aos 93 anos, o poeta associado ao Pantanal prefere pisar todos os dias no asfalto
Fonte: http://www.limacoelho.jor.br/
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