quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Contrários

Porque empregadas domésticas levam sobras de fartura das patroas, depois de um sábado de faxina, a mãe chega com um monte de bugigangas. No meio do pacote, um violãozinho de brinquedo, dois palmos se tanto, sem cordas, quebrado.

O menino não vê mais nada. Obceca encantado. Toda curiosidade e capacidade lúdica de seu espírito à espera daquele instrumento. Improvisa. Pede cola à vizinha para tapar rachadura do tampo e lustra com bombril. Dia seguinte, no terreiro da escola de samba, só larga do pé do vigia ao conseguir cordas velhas de violão e lascas de goma-laca. Com palitos de sorvete e pirulito, improvisa rastilho, pestana e novas cravelhas. Lustra o compensado. Trabalha como refinado luthier, obrando um Stradivarius. Afina a gosto as cinco cordas, sobe para a laje da casa e, sem a mãe saber dele, só sai ao anoitecer. Imita a posição de mãos dos violeiros e toca.

Simbiose perfeita, entre o pequeno violão e o moleque da morada de tijolo aparente, em rua de barro. Ali, onde a adversidade, uma vez em um milhão, encontra caminho na arte de suportar vicissitude, dor, solidão. Menino observador de coisas olha pardais no farpado de cercas, andorinhas no fio de luz, diferencia formato de folhas e flores, nuanças de verde, noites de lua com claro-escuro e grilos, com sutis dessemelhanças de estrelas e ruídos. Percebe comportamento de bichos e pessoas: cor de olhos, tom de pele, pena e pelagem, tipo de boca, dentes, canto, voz. Passa tempo na quadra com sambistas, sente ritmos e a melodia, passos de dança. Tudo observa e escuta. É espontaneamente moldado para o oficio das artes. Está pronto para aprender a tocar sem parar e se tornar um artista em perfeição. Tem futuro garantido se continuar improvisando, superar contrários e deslembrar que o pai sumiu faz tempo, quase sempre falta comida, toda semana vê presunto desovado na vala, o irmão menor morreu de descaso do posto de saúde, teve bala perdida no filho da vizinha, não está mais na escola porque a mãe trabalha e precisa de tomar conta da irmã que mal começa a andar.

Por Paulo Maldonado


Paulo Maldonado nasceu em Belo Horizonte, em 1945.
Aos nove anos mudou-se com a família para Niterói, onde fez o ginásio, o clássico e a faculdade de Direito. Aos 16 anos já trabalhava em escritório de advocacia, no Rio de Janeiro, onde viveu de 1969 até 1995, quando retornou a Icaraí. Foi líder estudantil nos movimentos de 1968, contra a ditadura militar.

É publicitário desde os 18 anos. Sua estréia literária se deu em 1986, com o livro de poemas Vai . Em 1988 publicou O Último Gole e, em 1997, outra coletânea de poemas com o título Vago e Vagas. Agora, em 2008, de volta ao Jardim Botânico, lança 20 Contos Curtos, seleção de contos escritos nos últimos anos.
Fonte: umacoisaeoutra

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