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domingo, 13 de junho de 2010

As celebrações da vida


Ontem, pleno Dia dos Namorados, parei atrás de um senhor na fila de frios do supermercado. Pediu salsichas. “Não. Coloque menos, por favor”, disse à pessoa que o atendia e virou-se para mim: “Só a minha mulher comia salsichas comigo. Ela morreu há dois anos depois de vivermos 51 anos juntos. Minha filha que mora comigo prefere não jantar. Faz dois anos que não tenho companhia para comer salsichas.”

O que eu poderia dizer? 51 anos é mais do que eu já vivi. Por um instante me imaginei partilhando a vida e salsichas com alguém por mais de meio século, mas o homem voltou a desabafar comigo: “Não tem nenhum dia em que eu não pense nela. É duro, viu? Não é só a salsicha, ela fazia uns doces maravilhosos. A menina que trabalha lá em casa também faz, mas não é a mesma coisa.”

Não, não é. Ele sabe que não são doces nem salsichas que lhe fazem falta, mas a pessoa a quem essas coisas remetem, alguém com quem partilhou 51 anos de caminhada e que não voltará. Mesmo assim, ele precisa jantar salsichas e comer doces para celebrar os momentos que ele teve e que atestam que ele viveu.

Todos nós precisamos de celebrações próprias para marcar alegrias e tristezas, celebrações de chegadas e de adeus. O problema é que não temos esse costume. A internet, o telefone, o shopping center acabam se tornando os altares para expurgar nossas dores. Não temos uma celebração para o fim de um namoro, para um divórcio, para a perda de um emprego nem para os pais que sofrem um aborto, por exemplo.

Quando sofri o fim de um lindo namoro, minha amiga Beth percebeu o tamanho da minha dor e se ofereceu para, no Dia dos Namorados, fazer sua especialidade na minha casa, uma lasanha com manjericão. Com a minha mãe, compramos juntos os ingredientes e cozinhamos aquele prato. Em volta de uma bonita mesa, comemos e bebemos. Sempre debochada, Beth tirou sarro da minha situação, fez piada da vida e nos empanturrou com uma maravilhosa massa. Ela foi a sacerdotisa daquela celebração que marcou o fim de uma bela parte da minha vida. Revigorado, recobrei esperanças, realimentei sonhos, continuei a vida e vivi histórias ainda mais belas do que aquela que havia deixado para trás.

A partilha do pão com os amigos é a nossa maneira de agradecer aos céus por tudo de bom que vivemos, tudo de belo que somos e tudo de importante que perdemos e tivemos de deixar para trás. Levantar uma taça de vinho serve também para encerrar algo maravilhoso que vivemos e já não temos, não para lamentar, mas para transformá-los em tinta a fim de escrever capítulos ainda melhores que os passados, mesmo que nunca iguais. Nossos banquetes de despedida devem celebrar a vida e dizem mais a nós mesmos do que a qualquer outra pessoa. Por isso, o prato principal pode ser caviar, pizza, lasanha ou salsicha.

por Fábio Reynol

Fonte: diariodatribo.blog

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Sozinho


Maria das Dores precisava sair e não tinha com quem deixar Fotolito. Já estava levando o pequeno Linotipo no colo e seria muito difícil cuidar dos dois. “Ele já é grandinho”, pensou e, virando na direção de Fotolito, continuou.

- Foto! A mamãe precisa sair uns minutinhos. Se eu te deixar sozinho, promete se comportar?

Enquanto dizia que sim, o olhar de Fotolito denunciava a figa que fazia com as mãos atrás do corpo.

- Então ta. Só não sai de dentro de casa enquanto eu não chegar e não mexe no fogão.
Saiu com o bebê entre os braços, trancando a porta sem olhar para trás. Era a primeira vez que deixava o filho sozinho em casa. “Não sai casa… não mexe fogão”, era tudo que ele lembrava. Brincou, correu, pulou. Fez guerra de travesseiro com um amigo imaginário, desenhou um boneco no espelho e chutou a bola na mesa da cozinha, derrubando uma xícara. Foi aí que a fome bateu. “Não mexe fogão”, lembrava enquanto o estomago dizia “comer, comer, comer, comer, comer”.

Ele não podia contrarias as regras básicas, senão não teria chance de ficar sem a mãe em casa tão cedo. Abriu a despensa procurando um pacote de bolachas. Não encontrou. Achou um pacote de macarrão instantâneo. Abriu e tentou comer. Não gostou. Teve uma ideia.

Maria das Dores abriu a porta de casa e ouviu barulho de chuveiro. Será que Joselito tinha chegado mais cedo da gráfica? Chamou por Foto, mas não obteve resposta. Caminhou, preocupada, até o banheiro e lá estava o pequeno Fotolito, com a roupa toda molhada, segurando um escorredor de macarrão sob a água quente que vertia do chuveiro.

Por Thiago Floriano

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Sem Vestígios ( escrito sem a letra A )


O último serviço noturno e o fim do longo expediente em breve. Um prêmio de consolo depois de um número sem fim de tempo com os olhos despertos. Por isso, o detetive mostrou o distintivo no corredor e entrou velozmente no recinto. Primeiro, olhou o corpo estendido no piso frio, coberto só por um lençol de cetim. Depois, percebeu os móveis e objetos em desordem. Curvou-se e mexeu no lençol, olhou de perto o rosto do defunto e pegou com um lenço o vidro de remédio que este segurou entre os dedos mortos. Leu o rótulo e concluiu que o pobre morreu de overdose de sementes de sonhos. Benflogin. Fonte de delírios, visões e desequilíbrios nos cérebros de muitos dos jovens moderninhos. O doido espremeu perto de cem comprimidos, misturou com meio litro de uísque e foi ver Jesus no céu. Ou pode ser que primeiro viu Jesus, viu o céu, o demônio, o inferno, ou tudo junto, e depois morreu. De todo modo, o imbecil morreu feliz em vez de deprimido.

O detetive pensou em escrever suicídio (ou burrice juvenil) no seu bloco de registros e ir logo beber um copo de vinho tinto demi-sec e depois dormir, contudo ficou surpreso vendo o perito médico, velho conhecido seu, em silêncio e sério, estendido em um pufe vermelho.

- O que foi com você, Joel, ficou sensível com o presunto? – perguntou o detetive em um tom leve.

- Ele levou choques nos testículos – respondeu Joel.

- O quê?

- Isso mesmo que você ouviu, detetive Onofre, ele levou eletrochoques nos testículos. E teve pequenos cortes com um instrumento como um bisturi por todo o corpo. E o pé esquerdo ficou no fogo por um bom tempo. Olhe como o pé é preto mesmo sendo o resto do corpo em tom de inverno europeu.

- Um pouco de humor negro no recinto, Joel? – perguntou o detetive Onofre, minutos depois de mexer nos escritos sobre o televisor.

- Como?

- Encontrei nos documentos dele o nome John Smith. De Luxemburgo. Resumindo: ele é europeu. E como você disse um “corpo em tom de inverno europeu” justo sobre um presunto europeu…

- Me desculpe, nem me informei sobre isso.

- Me diz o que este louco de Luxemburgo fez hoje, por obséquio, que o meu turno findou tem tempo.

- Onofre, creio em hipóteses diferentes: ou ele fez isso com ele mesmo depois dos efeitos psicotrópicos do remédio ou criminosos bem inteligentes querem que pensemos que ele se suicidou, depois de terem feito tudo o que existe de perverso com o infeliz.

- Existem indícios de terceiros no recinto ou de confronto violento?

- Só encontrei impressões do morto. Nenhum vizinho o viu com outros. Só um dos vizinhos escutou o som de móveis sendo desferidos com poder e os gritos dementes do inquilino.

- É melhor você ir dormir, meu velho, e evite conclusões que se desviem do óbvio. O homem simplesmente pirou e foi só isso – concluiu o detetive Onofre, movendo-se no rumo do corredor e escrevendo em seu bloco que o crime, se é que houve crime, foi um só: suicídio.

O detetive foi-se sorrindo por deduzir que excesso de serviço sim é um crime. Hediondo.

Por JLM

Texto escrito para o Duelo de Escritores do dia 21.05.2010, com o desafio de escrever um texto sem a letra a.

Pare o ônibus! Eu quero descer!


- Menina do céu! Nem te conto o que me aconteceu...

- Fala, Zeti! Você está com uma caaara... – Disse Elizandra.

- Você sabe que precisei ir ao Rio e o Beto ficou falando dos assaltos recentemente ocorridos nos ônibus de turismo no último feriado de Páscoa. Então, na hora de voltar para casa o meu lugar foi justo o da frente do lado contrário ao motorista.

-Mas, o que aconteceu, mulher? – Interrompeu Elizandra cheia de curiosidade...

- Escuta!!! De repente, apareceram do lado de fora do ônibus, olhando diretamente para mim, dois homens. Um deles, um rapaz negro de brinco e capuz carregando mochila carteiro com um jeito incomodado, olhando para tudo e todos dentro do ônibus; o outro, um homem de no máximo quarenta e oito anos. Tinha bigodes, usava boné e, ainda do lado de fora, ficou me filmando por bons minutos e antes de entrar na condução deu uma volta por todo o ônibus.

“- Vão assaltar o ônibus!” – Concluí já pronta para descer da condução, mas o motorista entra e atrás dele, os “assaltantes”!

Meu coração bateu na garganta, não senti minhas pernas..O lugar a meu lado estava vago... Digo estava pois aquele homem bigodudo com sua voz grave foi dizendo:

“-Dá licença...” – Disse já sentando e me olhando muito, para minhas mãos, para a bolsa. Certamente observava meus anéis para uma possível investida. Presa fácil, sozinha e acuada no canto da janela.

Novamente tive ímpeto de levantar-me e pensei em dizer ao motorista que havia esquecido os meus documentos na casa de um parente para não levantar suspeitas... Mas, as pernas não me obedeciam e permaneci imóvel.

O ônibus já ia sair quando vi uma senhora na rodoviária acenando para mim com ar aflito. Nessa hora quase enfartei, novamente imaginando que ela queria me alertar sobre aqueles assaltantes. Mas, depois vi que ela fazia sinal para parar o ônibus, trazia na mão a passagem e sem querer, de tão assustada gritei para o motorista:

- Ela esqueceu!!!

O bigodudo fala com sua voz grave de malandro:

“- Não prestou atenção, tem que ficar para trás mesmo... Não pode esperar, não!!!”

O motorista resmunga alguma coisa, para o ônibus, abre a porta, reclama do atraso com a mulher. A passageira atrasada respondeu-lhe que se confundiu com a plataforma.

Não sei o que me aconteceu, Elizandra, danei a falar com aquele cara a meu lado, talvez numa tentativa desesperada de não ser assaltada:

- Ela se confundiu com os números... A plataforma 38, ela pensou ser 30, por que muitas vezes o zero é cortado...

-É... – Foi tudo o que ele disse.

Quando o motorista novamente saía com o ônibus, o bigodudo ao meu lado, esfregando as mãos disse:

“-Hoje a estrada está boa, a viagem vai ser uma beleza!"

Ali naquele momento vi meus pertences todos sendo levados pelos dois meliantes. Sim, eles iriam nos assaltar no ponto certo onde não houvesse socorro. Gelei e fiquei pensando em o que dizer para tentar coibir a ação dos bandidos...

Nisso, o homem a meu lado obsevando-me demoradamente e diz:

“-Hoje eu ralei pra danar! Não é mole não...”

O medo era tanto, o pavor se fez tanto em mim que só me lembrava das profecias desgraçadas do Beto dizendo “cuidado com essas viagens de feriados, você vai acabar sendo assaltada...”.

E o ônibus seguia e eu tremia. Tomada de pavor comecei criar situações na mente. Aquele homem a meu lado não parava de olhar seu celular. Logo, movida por impulso, imaginei:

“-Aposto que ele está olhando o celular para ver onde não há sinal e ninguém poderá chamar por socorro, aí é que ele e o outro assaltante que está no fim do ônibus aproveitarão para nos assaltar... É isso! Só pode...”

O homem volta a falar comigo:

“-De dia é bom viajar na frente, mas à noite... – Olhou para mim fitando-me demais e continuou. – À noite a luz dos carros não deixa a gente cochilar...”

Aqueles olhares demorados para mim estavam me incomodando, eu precisava fazer alguma coisa e falei:

-É... Eu não gosto de viajar aqui na frente, acho muito perigoso, coloquei até o cinto por medida de segurança... Sei lá! Dizem que este banco da frente é conhecido como “Jesus está chamando”...

Na mesma hora o bigodudo pegou o cinto e antes de colocá-lo isolou na madeira dizendo:

“-Vira essa boca pra lá, isola! Fala pra Jesus me colocar no final da agenda dele!”

Nessa hora até achei graça por conseguir amedrontar o suposto ladrão...

Então, aproveitando-me daquele momento em que o homem estava de cinto, na tola intenção de mudar o pensamento dele, tive uma ideia tresloucada e falei para que se apiedasse de mim:

- É, empregada doméstica sofre... – Falei com cara mais desolada que pude fazer.

“- Eu desço de quinze em quinze dias... Você desce todos os dias?” – Quis saber ele.

- Não... Toda semana. – Assustei-me, pois não imaginei que ele me faria uma pergunta dessas.

“- Trabalha no Centro?” – Quis saber mais.

“-Não.” - Limitei-me a responder.

A partir desse momento o bigodudo descerrou sobre sua vida profissional nos mínimos detalhes e o tal suspeito ladrão deu lugar a um bom moço trabalhador e que revelou que mora aqui na cidade, Lizandra. Somos praticamente vizinhos, acredita?

Antes de sair do ônibus foi ele quem fez a gentileza de descer a minha mala. E olhando daquele modo penetrante ainda me disse:

“-Se você é elegante e linda deste jeito, fico imaginando a sua patroa... Foi um prazer viajar ao seu lado!”

Dei uma sonora risada, agradeci e me afastei rápido dele.

“-Ha, ha, ha, você é maluca Zéti! Ele acreditou que você era empregada doméstica?”

- Sei lá... Mas, pelo jeito acreditou mesmo! Nunca mais vou julgar ninguém, pois já vi que não sou boa nisso! A mente medrosa faz com que criemos situações absurdas. O medo faz-nos tão perigosos quanto um ladrão.– Confessei.

- Você tem toda razão, amiga, você tem toda razão... – Concordou Elizandra.

Por Djanira Luz

Fonte: planetaliteratura

domingo, 2 de maio de 2010

Fábula da Convivência


Durante uma era glacial, muito remota, quando parte do globo terrestre esteve coberta por densas camadas de gelo, muitos animais não resistiram ao frio e morreram indefesos por não se adaptarem às condições do clima hostil.

Foi então, que uma grande manada de ouriços, numa tentativa de se proteger e sobreviver, começou a se unir, a juntar-se mais e mais. Assim, cada um podia sentir o calor do corpo do outro. E todos juntos, bem unidos, agasalhavam-se mutuamente, aqueciam-se, enfrentando, por mais tempo o inverno tenebroso.

Porém, vida ingrata, os espinhos de cada um começaram a ferir os companheiros mais próximos, justamente aqueles que lhes forneciam mais calor vital, questão de vida ou morte. E afastaram-se, feridos, magoados, sofridos. Dispersaram-se, por não suportarem mais tempo os espinhos dos seus semelhantes, doiam muito ...

Mas, essa não foi a melhor solução: afastados, separados, logo começaram a morrer congelados. Os que não morreram voltaram a se aproximar pouco a pouco, com jeito, com precauções, de tal forma que, unidos, cada qual reservava uma certa distância (mínima ) do outro, mas o suficiente para conviver sem ferir, para sobreviver sem magoar, sem causar danos recíprocos.

Assim suportaram-se resistindo a longa era glacial. Sobreviveram.

Autor desconhecido

Fonte: e-mail

segunda-feira, 15 de março de 2010

A Princesa e a Rã


Era uma vez... numa terra muito distante...uma princesa linda, independente e cheia de auto-estima.

Ela se deparou com uma rã enquanto contemplava a natureza e pensava em como o maravilhoso lago do seu castelo era relaxante e ecológico...

Então, a rã pulou para o seu colo e disse: linda princesa, eu já fui um príncipe muito bonito.
Uma bruxa má lançou-me um encanto e transformei-me nesta rã asquerosa.
Um beijo teu, no entanto, há de me transformar de novo num belo príncipe e poderemos casar e constituir lar feliz no teu lindo castelo.

A tua mãe poderia vir morar conosco e tu poderias preparar o meu jantar, lavar as minhas roupas, criar os nossos filhos e seríamos felizes para sempre...

Naquela noite, enquanto saboreava pernas de rã sautée, acompanhadas de um cremoso molho acebolado e de um finíssimo vinho branco, a princesa sorria, pensando consigo mesma:

- Eu, hein?... nem morta!

Luís Fernando Veríssimo

Fonte: bolsademulher

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O que significa trabalho em equipe?


É antiga, mas vale apena ler esta parábola.

Um rato, olhando pelo buraco na parede, vê o fazendeiro e sua esposa abrindo um pacote. Pensou logo no tipo de comida que poderia haver ali. Ao descobrir que era uma ratoeira ficou aterrorizado.

Correu ao curral da fazenda advertindo a todos:
- Há uma ratoeira na casa! Há uma ratoeira na casa!

A galinha disse:
- Desculpe-me Sr. Rato, eu entendo que isso seja um grande problema para o senhor, mas não me prejudica em nada, não me incomoda.

O rato foi então até o porco e lhe disse:
- Sr. Porco, há uma ratoeira na casa, uma ratoeira...

O porco disse:
- Desculpe-me Sr. Rato, mas não há nada que eu possa fazer, a não ser rezar. Fique tranqüilo que o senhor será lembrado nas minhas preces.

O rato dirigiu-se então à vaca.

A vaca lhe disse:
- O que Sr. Rato? Uma ratoeira? Por acaso estou em perigo?

- Acho que não Sra. Vaca... respondeu o rato.

Então o rato voltou para seu canto, cabisbaixo e abatido, para encarar a ratoeira do fazendeiro
sozinho.

Naquela noite ouviu-se um barulho, como o de uma ratoeira pegando sua vítima. A mulher do fazendeiro correu para ver o que havia pego. No escuro, ela não viu que a ratoeira havia pego a cauda de uma cobra venenosa. E a cobra picou a mulher.

O fazendeiro a levou imediatamente ao hospital. Ela voltou com febre. Para amenizar a sua febre, nada melhor que uma canja de galinha. O fazendeiro pegou seu cutelo e foi providenciar o ingrediente principal, a galinha.

Como a doença da mulher continuava, os parentes, amigos e vizinhos vieram visitá-la. Para alimentá-los, o fazendeiro matou o porco.

A mulher não melhorou e acabou morrendo.
Muita gente veio para o funeral e o fazendeiro teve que sacrificar a vaca para poder alimentar todo aquele povo.

MORAL DA HISTÓRIA:
Na próxima vez que você ouvir dizer que alguém está diante de um problema e acreditar que o problema não lhe diz respeito, lembre-se que quando existir uma ratoeira todos correm risco.

'Quando convivemos em equipe, o problema de um, é um problema de todos'.

Fonte: vooz

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Jeca Tatuzinho - Monteiro Lobato

Lançado em 1924, Jeca Tatuzinho veio ensinar noções de higiene e saneamento às crianças, por meio do personagem-símbolo criado por Monteiro Lobato. Adaptado no ano seguinte e, ao que consta, oferecido a seu amigo Cândido Fontoura para promoção dos produtos do laboratório Fontoura Serpe & Cia, em especial do Biotônico, chegaria a 100 milhões de exemplares no centenário do escritor.

Considerada a peça publicitária de maior sucesso na história da propaganda brasileira, inspiraria, naquele ano de 1982, a criação do Prêmio Jeca Tatu. Instituído pela agência CBBA – Castelo Branco e Associados, representou uma homenagem “à obra-prima da comunicação persuasiva de caráter educativo, plenamente enquadrada na missão social agregada ao marketing e à propaganda”.

O folheto do Biotônico Fontoura, cujo texto aqui reproduzimos, foi ilustrado em suas primeiras edições por Belmonte e, em seguida, por J. U. Campos.

I

Jeca Tatu era um pobre caboclo que morava no mato, numa casinha de sapé. Vivia na maior pobreza, em companhia da mulher, muito magra e feia, e de vários filhinhos pálidos e tristes.
Jeca Tatu passava os dias de cócoras, pitando enormes cigarrões de palha, sem ânimo de fazer coisa nenhuma. Ia ao mato caçar, tirar palmitos, cortar cachos de brejaúva, mas não tinha idéia de plantar um pé de couve atrás da casa. Perto corria um ribeirão, onde ele pescava de vez em quando uns lambaris e um ou outro bagre. E assim ia vivendo.
Dava pena ver a miséria do casebre. Nem móveis, nem roupas, nem nada que significasse comodidade. Um banquinho de três pernas, umas peneiras furadas, a espingardinha de carregar pela boca, muito ordinária, e só.
Todos que passavam por ali, murmuravam:
- Que grandessíssimo preguiçoso!

II

Jeca Tatu era tão fraco que, quando ia lenhar, vinha com um feixinho que parecia brincadeira. E vinha arcado, como se estivesse carregando um enorme peso.
- Por que não traz de uma vez um feixe grande? perguntaram-lhe um dia.
Jeca Tatu cortou a barbicha rala e respondeu:
- Não paga a pena.
Tudo para ele não pagava a pena. Não pagava a pena consertar a casa, nem fazer uma horta, nem plantar árvores de fruta, nem remendar a roupa.
Só pagava a pena beber pinga.
- Por que você bebe, Jeca? diziam-lhe.
- Bebo para esquecer.
- Esquecer do quê?
- Esquecer as desgraças da vida.
E os passantes murmuravam:
- Além de vadio, bêbado …

III

Jeca possuía muitos alqueires de terra, mas não sabia aproveitá-la. Plantava todos os anos uma rocinha de milho, outra de feijão, uns pés de abóbora e mais nada. Criava em redor da casa um ou outro porquinho e meia dúzia de galinhas. Mas o porco e as aves que cavassem a vida, porque Jeca não lhes dava o que comer. Por esse motivo o porquinho nunca engordava, e as galinhas punham poucos ovos.
Jeca possuía ainda um cachorro, o Brinquinho, magro e sarnento, mas bom companheiro e leal amigo.
Brinquinho vivia cheio de bernes no lombo e muito sofria com isso. Pois apesar dos ganidos do cachorro, Jeca não se lembrava de lhe tirar os bernes. Por que? Desânimo, preguiça…
As pessoas que viam aquilo, franziam o nariz.
- Que criatura imprestável! Não serve nem para tirar berne de cachorro…

IV

Jeca só queria beber pinga e espichar-se ao sol, no terreiro. Ali ficava horas, com o cachorrinho rente, cochilando. A vida que rodasse, o mato que crescesse na roça, a casa que caísse. Jeca não queria saber de nada. Trabalhar não era com ele.
Perto morava um italiano já bastante arranjado, mas que ainda assim trabalhava o dia inteiro. Por que Jeca não fazia o mesmo?
Quando lhe perguntavam isso, ele dizia:
- Não paga a pena plantar. A formiga come tudo.
- Mas como é que seu vizinho italiano não tem formiga no sítio?
- É que ele mata.
E por que você não faz o mesmo?
Jeca coçava a cabeça, cuspia por entre os dentes e vinha sempre com a mesma história:
- Quá! Não paga a pena …
- Além de preguiçoso, bêbado; e além de bêbado, idiota, era o que todos diziam.

V

Um dia um doutor portou lá por causa da chuva e espantou-se de tanta miséria. Vendo o caboclo tão amarelo e magro, resolveu examiná-lo.
- Amigo Jeca, o que você tem é doença.
- Pode ser. Sinto uma canseira sem fim, e dor de cabeça, e uma pontada aqui no peito, que responde na cacunda.
- Isso mesmo. Você sofre de ancilostomíase.
- Anci… o que?
- Sofre de amarelão, entende? Uma doença que muitos confundem com a maleita.
- Essa tal maleita não é sezão?
- Isso mesmo. Maleita, sezão, febre palustre ou febre intermitente: tudo a mesma coisa.
A sezão também produz anemia, moleza e esse desânimo do amarelão; mas é diferente. Conhece-se a maleita pelo arrepio ou calafrio que dá, pois é uma febre que vem sempre em horas certas e com muito suor. Quem sofre de sezão sara com o MALEITOSAN FONTOURA. Quem sofre de amarelão sara com a ANKILOSTOMINA FONTOURA. Eu vou curar você.

VI

O doutor receitou um vidro de ANKILOSTOMINA FONTOURA, para tomar assim: seis comprimidos hoje pela manhã e outros seis amanhã de manhã.
- Faça isto duas vezes, com o espaço de uma semana. E de cada vez tome também um purgante de sal amargo, se duas horas depois de ter ingerido a ANKILOSTOMINA não tiver evacuado. E trate de comprar um par de botinas e alguns vidros de BIOTÔNICO e nunca mais me ande descalço e nem beba pinga, ouviu?
-Ouvi, sim, senhor!
- Pois é isso, rematou o doutor, tomando o chapéu. A chuva já passou e vou-me embora. Faça o que mandei, que ficará forte, rijo e rico como o italiano. Na semana que vem estarei aqui de volta.
- Até por lá, sêo doutor!
Jeca ficou cismando. Não acreditava muito nas palavras da Ciência, mas por fim resolveu comprar os remédios, e também um par de botinas ringideiras.
Nos primeiros dias foi um horror. Ele andava pisando em ovos. Mas acostumou-se, afinal…

VII

Quando o doutor voltou, Jeca estava bem melhor, graças à ANKILOSTOMINA e ao BIOTÔNICO. O doutor mostrou-lhe com uma lente o que tinha saído das suas tripas:
- Veja, sêo Jeca, que bicharia tremenda estava você a criar na barriga! São os tais ancilóstomos, uns bichinhos dos lugares úmidos, que entram pelos pés, vão varando pela carne adentro até alcançarem os intestinos. Chegando lá, grudam-se nas tripas e escangalham com o freguês.
Tomando a ANKILOSTOMINA, você bota fora todos os ancilóstomos que tem no corpo. E andando sempre calçado, não deixa que entrem os que estão na terra. Fazendo isso e fortalecendo-se com alguns vidros de BIOTÔNICO, ovos e leite, você fica livre da doença para sempre.
Jeca abriu a boca, maravilhado.
- Os anjos digam amém, sêo doutor!


VIII

Mas Jeca não podia acreditar numa coisa: que os bichinhos entrassem pelo pé. Ele era “positivo” e dos tais que “só vendo”. O doutor resolveu abrir-lhe os olhos: Levou-o a um lugar úmido, atrás de casa, e disse:
- Tire a botina e ande um pouco por aí.
Jeca obedeceu.
- Agora venha cá. Sente-se. Bote o pé em cima do joelho. Assim. Agora examine a pele com essa lente.
Jeca tomou a lente, olhou e percebeu vários vermes pequeninos que já estavam penetrando na sua pele, através dos poros. O pobre homem arregalou os olhos, assombrado.
- E não é que é mesmo? Quem “haverá” de dizer!…
- Pois é isso, sêo Jeca, e daqui por diante não duvide mais do que disser a Ciência.
- Nunca mais! Daqui por diante dona Ciência está dizendo, Jeca está jurando em cima! T’esconjuro! E pinga, então, nem para remédio…

IX

Tudo o que o doutor disse aconteceu direitinho! Três meses depois ninguém mais conhecia o Jeca. A ANKILOSTOMINA curou-o do Amarelão. O BIOTÔNICO deixou-o bonito, corado, forte como um touro.
A preguiça desapareceu. Quando ele agarrava no machado, as árvores tremiam de pavor.
Era pã, pã, pã… horas seguidas, e os maiores paus não tinham remédio senão cair.
E Jeca, cheio de coragem, botou abaixo o capoeirão, para fazer uma roça de três alqueires. E plantou eucaliptos nas terras que não se prestavam para cultura. E consertou todos os buracos da casa. E fez um chiqueiro para os porcos. E um galinheiro para as aves. O homem não parava, vivia a trabalhar com fúria que espantou até o seu vizinho italiano.
- Descanse um pouco, homem! Assim você arrebenta… diziam os passantes.
- Quero ganhar o tempo perdido, respondia ele, sem largar do machado. Quero tirar a prosa do “italiano”.

X

Jeca, que era um medroso, virou valente. Não tinha mais medo de nada, nem de onça! Uma vez, ao entrar no mato, ouviu um miado estranho.
- Onça! Exclamou ele. É onça e eu aqui sem uma faca!…
Mas não perdeu a coragem. Esperou a onça, de pé firme. Quando a fera o atacou, ele ferrou-lhe tamanho murro na cara que a bicha rolou no chão, tonta. Jeca avançou de novo, agarrou-a pelo pescoço e estrangulou-a.
- Conheceu, papuda? Você pensa que está lidando com algum pinguço opilado? Fique sabendo que tomei ANKILOSTOMINA e BIOTÔNICO e uso botina ringideira!…
A companheira da onça, ao ouvir essas palavras, não quis saber de histórias – azulou! Dizem que até hoje está correndo…

XI

Ele, que antigamente, quando lenhava, só trazia três pausinhos, carregava agora cada feixe que metia medo. E carregava-os sorrindo, como se o enorme peso não passasse de brincadeira.
- Amigo Jeca, você arrebenta! diziam-lhe. Onde se viu carregar tanto pau de uma vez?
- Já não sou aquele de dantes! Isto para mim agora é canja… respondia o caboclo, sorrindo.
Quando teve de aumentar a casa, foi a mesma coisa. Derrubou no mato grossas perobas, atorou-as, lavrou-as e trouxe no muque para o terreiro as toras todas. Sozinho!
- Quero mostrar a essa paulama quanto vale um homem que tomou ANKILOSTOMINA e BIOTÔNICO, que usa botina cantadeira e que não bebe nem um só martelinho de cachaça!
O italiano via aquilo e coçava a cabeça.
- Se eu não tropicar direito, este diabo me passa na frente. Per Bacco!

XII

Dava gosto ver suas roças. Comprou arados e bois, e não plantava nada sem primeiro afofar a terra. O resultado foi que os milhos vinham lindos e o feijão era uma beleza.
O italiano abria a boca, admirado, e confessava nunca ter visto roças assim.
E Jeca já não plantava rocinhas, como antigamente. Só queria saber de roças grandes, cada vez maiores, que fizessem inveja no bairro.
E se alguém lhe perguntava:
- Mas para que tanta roça, homem? ele respondia:
- É que agora quero ficar rico. Não me contento com trabalhar para viver. Quero cultivar todas as minhas terras, e depois formar aqui duas enormes fazendas – a Fazenda Ankilostomina e Fazenda Biotônico. E hei de ser até coronel…
E ninguém duvidava mais. O italiano dizia:
- E forma mesmo! E vira mesmo coronel! Per la Madonna!…

XIII

Por esse tempo, o doutor passou por lá e ficou admiradíssimo com a transformação de seu doente.
Esperara que ele sarasse, mas não contara com tal mudança.
Jeca o recebeu de braços abertos e apresentou-o à mulher e aos filhos.
Os meninos cresciam viçosos, e viviam brincando, contentes como os passarinhos.
E toda gente ali andava calçada. O caboclo ficara com tanta fé no calçado, que metera botinas até nos animais caseiros!
Galinhas, patos, porcos, tudo de sapatinho nos pés! O galo, esse andava de bota e espora!
- Isso também é demais, sêo Jeca, disse o doutor. Isso é contra a natureza!
- Bem sei. Mas quero dar um exemplo a esta caipirada bronca. Eles vêm aqui, vêem isso e não se esquecem mais da história.

XIV

Em pouco tempo os resultados foram maravilhosos. A porcada aumentou de tal modo, que vinha gente de longe admirar aquilo. Jeca adquiriu um caminhão, e em vez de conduzir os porcos ao mercado pelo sistema antigo, levava-os de auto, num instantinho, buzinando pela estrada afora, fon-fon! Fon-fon! …
As estradas eram péssimas; mas ele consertou-as à sua custa. Jeca parecia um doido. Só pensava em melhoramentos, progressos, coisas americanas. Aprendeu logo a ler, encheu a casa de livros e por fim tomou um professor de inglês.
- Quero falar a língua dos bifes para ir aos Estados Unidos ver como é lá a coisa.
O seu professor dizia:
- O Jeca só fala inglês agora. Não diz porco; é pig. Não diz galinha; é hen… Mas de álcool, nada. Antes quer ver o demônio, que um copinho da “branca”…

XV

Jeca só fumava charutos fabricados especialmente para ele, e só corria as roças montado em cavalos árabes de puro sangue.
- Quem o viu e quem o vê! Nem parece o mesmo. Está um “estranja” legítimo, até na fala.
Na “Fazenda Biotônico” havia de tudo. Campos de alfafa. Pomares belíssimos com quanta fruta há no mundo. Até criação do bicho-da-seda; Jeca formou um amoreiral que não tinha fim.
- Quero que tudo aqui ande na seda, mas seda fabricada em casa. Até os sacos aqui da fazenda tem que ser de seda, para moer os invejosos…
E ninguém duvidava de nada.
- O homem é mágico, diziam os vizinhos. Quando assenta de fazer uma coisa, faz mesmo, nem que seja um despropósito…

XVI

A “Fazenda Biotônico” tornou-se famosa no país inteiro. Tudo ali era por meio do rádio e da eletricidade. Jeca, de dentro do seu escritório, tocava num botão e o cocho do chiqueiro se enchia automaticamente de rações muito bem dosadas. Tocava outro botão e um repuxo de milho atraía todo o galinhame!…
Suas roças eram ligadas por telefones. Da cadeira de balanço na varanda, ele dava ordens aos feitores, lá longe.
Chegou a mandar buscar nos Estados Unidos um aparelho de televisão.
- Quero aqui desta varanda ver tudo o que se passa em minha fazenda.
E tanto fez, que viu. Jeca instalou os aparelhos, e assim pôde, da sua varanda, com o charutão na boca, não só falar por meio do rádio para qualquer ponto da fazenda, como ainda ver, por meio da televisão, o que os camaradas estavam fazendo.

XVII
Ficou rico e estimado, como era natural; mas não parou aí. Resolveu ensinar o caminho da saúde aos caipiras das redondezas. Para isso montou na fazenda e vilas próximas vários POSTOS DE MALEITOSAN, onde tratava os enfermos de sezões; e também POSTOS DE ANKILOSTOMINA, onde curava os doentes de amarelão e outras verminoses.
E quando algum empregado sentia alguma dor de cabeça, se estava resfriado, Jeca arrumava-lhe uns dois ou três comprimidos de Fontol, e imediatamente o homem estava bom, e pronto para o serviço.
O seu entusiasmo era enorme. “Hei de empregar tôda minha fortuna nesta obra de saúde geral, dizia. Meu patriotismo é este. Minha divisa: Curar gente. Abaixo a bicharia! Viva o Biotônico! Viva ANKILOSTOMINA! Viva o Maleitosan! Viva o Fontol!”
A estes vivas o coronel Jeca aumentou mais um. Foi quando apareceu o grande “liquida-insetos” chamado DETEFON e ele o experimentou na miuçalha da fazenda: pulgas, percevejos, piolhos, baratas, pernilongos e moscas. Deixou aquilo lá sem um só bichinho para remédio.
Não contente com isso, Jeca tomou o hábito de nunca sair a cavalo ou de automóvel sem levar a tiracolo a bomba de pulverizar o DETEFON. Entrava nos casebres de beira de caminho e antes do “Bom dia!” punha-se fon, fon, fon, detefon, a pulverizar tudo, coisas e gentes. Quando acaba, dizia:
- Ninguém faz a conta dos males que estes bichinhos causam à humanidade, como transmissores de moléstias… e dava mais umas bombadas de lambuja.
E a curar gente da roça passou Jeca toda a sua vida. Quando morreu, aos 89 anos, não teve estátua ou grandes elogios nos jornais. Mas ninguém ainda morreu de consciência mais tranqüila. Havia cumprido o seu dever até o fim.

XVIII

Meninos: nunca se esqueçam desta história; e, quando crescerem, tratem de imitar o Jeca. Se forem fazendeiros, procurem curar os camaradas. Além de ser para eles um grande benefício, é para você um alto negócio. Você verá o trabalho dessa gente produzir três vezes mais. Uma país não vale pelo tamanho, nem pela quantidade de habitantes. Vale pelo trabalho que realiza e pela qualidade da sua gente. Ora, ter mais saúde é a grande qualidade de um povo. Tudo mais vem daí. E o grande remédio que combate o amarelão, esse mal terrível que tantos braços preciosos rouba ao trabalho, é a ANKILOSTOMINA. Assim como o grande conservador da saúde, que produz energia, força e vigor, chama-se BIOTÔNICO FONTOURA.

Fonte: brasilcultura

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Diálogo sobre perdedores e vencedores


Só perdedores como amigos.
– Como é que é?
– Isso, perdedores se atraem.
– Seus amigos são meus também. Nenhum é perdedor.
– Depende do ângulo de se olhar.
– Ângulo? Que ângulo?
– Acho vencedores insuportáveis. Só falam de vitória.
- Perdedores nunca comentam derrota.
– Não estou entendendo.
– Vencedores se dão com perdedores para exibir sua condição. O contrário não ocorre. Perdedor foge de vencedor.
– Perdedor de quê? Vencedor em quê?
– De tudo. Na vida. Basta reparar o comportamento, logo vê: perdedor ou vencedor.
– Essa estória dá tese. Mas é maniqueísta, simplista. A vida é bem mais complexa.
– Falo de atitude diante do mundo. Chamo de vencedor quem acredita no papel que representa, senta na cabeceira, levanta voz, faz sucesso, tem resposta pra tudo, manda em mulher, ganha mais, é chefe, patrão, dá ordens. Digo do ser humano em geral, qualquer sociedade e atividade, bolsa de valores ou aldeia isolada da Amazônia.
– E perdedor?
– O oposto. Vive em dúvida e incerteza, vacila o tempo todo. Às vezes, um perdedor se finge vencedor. Em outras, tenta ser ou imitar vencedor e não convence. Entende? Viu aonde quero chegar?
– Não, mesmo. Pode afirmar que nosso pessoal, eu, você, somos perdedores?
– Sou perdedor com orgulho, consciente. A maioria nem sabe que é. A diferença é essa. Você vai entender: por mais que procure vitória, antes da tentativa, em seu íntimo, o perdedor sabe que a derrota é certa, convive com ela. Veja, não são duas categorias fixas, o cara pode ser idiota vencedor e consegue se tornar perdedor.
– Subjetivismo puro, você tem que provar com exemplo concreto, sem essa sua teoria de contrários. Começo com Picasso.
– Caso raro, no início, grande perdedor e virou vencedor.
– Cristo?
– Perdedor.
– O Che?
– Perdedor.
– Fidel?
– Vencedor.
– Pelé?
– Vencedor.
– Garrincha?
– Perdedor.
– Carlos Drummond de Andrade?
– Perdedor, fácil. Poeta verdadeiro nunca é vencedor.
– Jorge Amado?
– Vencedor.
– Graciliano Ramos?
– Perdedor.
– Pixinguinha?
– Perdedor.
– Tom Jobim?
– Vencedor.
– Nem vem. Você apenas estabeleceu valores, na sua preferência pessoal. A maioria das pessoas não pensa assim.
– A maioria segue como manada a fabricação da mídia. Pensa sem originalidade. Repara o jeito de cada um desses vencedores. Como são, como foram. Distantes da solidariedade, pernósticos, egoístas. Perdedores são especiais. Compara Garrincha com Pelé, Pixinguinha e Tom Jobim, Graciliano e Jorge Amado. Dá pra comparar? Perdedores são maiores, superam a precariedade humana.
– Tudo bem. Diz: eu, você, de nosso grupo, quem chama de perdedor e vencedor?
– Não tem jeito, você insiste. Quer ouvir. Só tem perdedores. Não disse que se atraem? Exceções eram você e a Mariinha, enquanto posavam como modelo de casal certinho. Agora, já não são mais vencedores, desde a separação. Não dá para negar que ambos melhoraram demais, particularmente a Mariinha. Agora o mérito de serem perdedores é quase todo de vocês, mas eu tenho orgulho de ter contribuído.

Por Paulo Maldonado

Contrários

Porque empregadas domésticas levam sobras de fartura das patroas, depois de um sábado de faxina, a mãe chega com um monte de bugigangas. No meio do pacote, um violãozinho de brinquedo, dois palmos se tanto, sem cordas, quebrado.

O menino não vê mais nada. Obceca encantado. Toda curiosidade e capacidade lúdica de seu espírito à espera daquele instrumento. Improvisa. Pede cola à vizinha para tapar rachadura do tampo e lustra com bombril. Dia seguinte, no terreiro da escola de samba, só larga do pé do vigia ao conseguir cordas velhas de violão e lascas de goma-laca. Com palitos de sorvete e pirulito, improvisa rastilho, pestana e novas cravelhas. Lustra o compensado. Trabalha como refinado luthier, obrando um Stradivarius. Afina a gosto as cinco cordas, sobe para a laje da casa e, sem a mãe saber dele, só sai ao anoitecer. Imita a posição de mãos dos violeiros e toca.

Simbiose perfeita, entre o pequeno violão e o moleque da morada de tijolo aparente, em rua de barro. Ali, onde a adversidade, uma vez em um milhão, encontra caminho na arte de suportar vicissitude, dor, solidão. Menino observador de coisas olha pardais no farpado de cercas, andorinhas no fio de luz, diferencia formato de folhas e flores, nuanças de verde, noites de lua com claro-escuro e grilos, com sutis dessemelhanças de estrelas e ruídos. Percebe comportamento de bichos e pessoas: cor de olhos, tom de pele, pena e pelagem, tipo de boca, dentes, canto, voz. Passa tempo na quadra com sambistas, sente ritmos e a melodia, passos de dança. Tudo observa e escuta. É espontaneamente moldado para o oficio das artes. Está pronto para aprender a tocar sem parar e se tornar um artista em perfeição. Tem futuro garantido se continuar improvisando, superar contrários e deslembrar que o pai sumiu faz tempo, quase sempre falta comida, toda semana vê presunto desovado na vala, o irmão menor morreu de descaso do posto de saúde, teve bala perdida no filho da vizinha, não está mais na escola porque a mãe trabalha e precisa de tomar conta da irmã que mal começa a andar.

Por Paulo Maldonado


Paulo Maldonado nasceu em Belo Horizonte, em 1945.
Aos nove anos mudou-se com a família para Niterói, onde fez o ginásio, o clássico e a faculdade de Direito. Aos 16 anos já trabalhava em escritório de advocacia, no Rio de Janeiro, onde viveu de 1969 até 1995, quando retornou a Icaraí. Foi líder estudantil nos movimentos de 1968, contra a ditadura militar.

É publicitário desde os 18 anos. Sua estréia literária se deu em 1986, com o livro de poemas Vai . Em 1988 publicou O Último Gole e, em 1997, outra coletânea de poemas com o título Vago e Vagas. Agora, em 2008, de volta ao Jardim Botânico, lança 20 Contos Curtos, seleção de contos escritos nos últimos anos.
Fonte: umacoisaeoutra

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Longe é um lugar que não existe


Livro de : Richard Bach

Há muito tempo, Rae Hansen,uma menina às vésperas de seus cinco anos,convida o amigo Richard Bach para sua festa de aniversário.
Confiante, ela o espera, apesar de saber que sua casa ficava além dos desertos,
tempestades e montanhas...

Como Richard Bach chega até lá e o presente que ele lhe dá são narrados nessa história mágica. Este clássico continua a inspirar as relações de amizade que não mais dependem de tempo nem espaço. Quem já voou nas asas da gaivota encontrará aqui muitos pensamentos para compartilhar "até que finalmente acabará descobrindo que não precisa do anel nem de pássaro para voar sozinho acima da quietude das nuvens" e "que as únicas coisas que importam são as feitas de verdade e alegria".

Aqui está o resumo dessa história...

"- Rae! Obrigado pôr me convidar para a sua festa de aniversário!"
Sua casa fica a mil quilômetros da minha e viajo apenas pela melhor das razões. E uma festa para Rae é a melhor e estou ansioso para estar ao seu lado.
Começo a viagem no coração do Beija-Flor, que há tanto tempo você e eu conhecemos. Ele se mostrou amigo como sempre, mas ficou espantado quando lhe disse que a pequena Rae estava crescendo e que eu estava indo à sua festa de aniversário, levando um presente.
Voamos algum tempo em silêncio, até que finalmente ele disse:
- Não entendo muito bem o que você falou, mas o que menos entendo é o fato de estar indo a uma festa.
- Claro que estou indo à festa. - respondi. - O que há de tão difícil de se compreender nisso?
Ele ficou calado e só voltou a falar quando chegamos à casa da coruja:
- Podem os quilômetros separar-nos realmente os amigos? Se quer estar com Rae, já não está lá?
- A pequena Rae está crescendo e estou indo à sua festa de aniversário com um presente. - falei para a coruja. Parecia estranho dizer "indo" depois da conversa com Beija-Flor, mas falei assim mesmo para que Coruja compreendesse.
Ela voou em silêncio pôr um longo tempo.
Era um silêncio amistoso, mas Coruja disse ao me deixar em segurança na casa da águia:
- Não entendo muito bem o que você falou, mas o que menos entendo é ter chamado sua amiga de pequena.
- Claro que ela é pequena, porque não é crescida - respondi. - O que há de tão difícil de se compreender nisso?
Coruja fitou-me com os olhos profundos, cor de âmbar, sorriu e disse:
- Pense a respeito.

- A pequena Rae está crescendo e estou indo à sua festa de aniversário com um presente. - falei para Águia. Parecia estranho falar agora "indo" e "pequena", depois das conversas com Beija-Flor e Coruja, mas falei assim mesmo para que Águia compreendesse.
Voamos juntos sobre as montanhas, subindo nos ventos das montanhas.
E Águia finalmente disse :
- Não entendo muito bem o que você falou, mas o que menos entendo é essa palavra aniversário.
- Claro que é aniversário. - respondi. - Vamos comemorar a hora que Rae começou e antes da qual ela não era. O que há de tão difícil de se compreender nisso?
Águia curvou as asas para a descida e foi pousar suavemente sobre a areia do deserto.
- Um tempo antes de Rae começar? Não acha que é mais a vida de Rae que começou antes que o tempo existisse?

- A pequena Rae está crescendo e estou indo à sua festa de aniversário com um presente. - falei para Gavião. Parecia estranho falar "indo", "pequena" e "aniversário", depois das conversas com Beija-Flor, Coruja e Águia, mas falei assim mesmo para que Gavião compreendesse.
O deserto se estendia interminavelmente lá embaixo e ele finalmente disse:
- Não entendo muito bem o que você falou, mas o que menos entendo é crescendo.
- Claro que ela está crescendo - respondi. - Rae está mais perto de ser adulta, mais longe de ser criança. O que há de tão difícil de se compreender nisso?
Gavião pousou finalmente numa praia deserta.
- Mais um ano longe de ser criança? Isso não me parece ser o mesmo que crescer.
E Gavião alçou vôo e foi embora.

Eu conhecia o bom senso de Gaivota. Voamos juntos, pensei com muito cuidado e escolhi as palavras, a fim de que, ao falar, Gaivota soubesse que eu estava aprendendo:
- Gaivota, por que está me levando a voar para ver Rae, quando na verdade sabe que estou com ela?
Gaivota sobrevoou o mar, as colinas, as ruas e pousou suavemente em seu telhado e disse:
- Porque o importante é você saber a verdade. Até saber, até realmente compreender, só pode demonstrá-la em coisas menores, com ajuda externa, de máquinas e pessoas e pássaros. Mas deve se lembrar sempre que não saber não impede a verdade de ser verdadeira.
E Gaivota se foi.

E agora é chegado o momento de abrir o seu presente. Presentes de lata e vidro amassam e quebram num dia, somem para sempre. Mas eu tenho um presente melhor para você.
É um anel para você usar. Cintila com uma luz especial e não pode ser tirado pôr ninguém, não pode ser destruído. Somente você, no mundo inteiro, pode ver o anel que lhe dou hoje, como fui o único que pude vê-lo quando era meu.
O anel lhe dá um novo poder. Usando-o, você pode alçar vôo nas asas de todos os pássaros que voam.
Pode ver através dos olhos dourados deles, pode tocar o vento que passa pôr suas penas macias, pode conhecer a alegria de se elevar muito acima do mundo e suas preocupações. Pode permanecer no céu pôr tanto tempo quanto quiser, através da noite, pelo descer do sol; e quando sentir vontade de outra vez descer, suas perguntas terão respostas, suas preocupações terão acabado.
Como tudo o que não pode ser tocado com a mão nem visto com o olho, seu presente se torna mais forte à medida que o usa.
A princípio, pode usá-lo apenas quando está fora de casa, contemplando o pássaro com quem você voa.
Mais tarde, porém, se usá-lo bem, vai funcionar com pássaros que não pode ver, até que finalmente acabará descobrindo que não precisa do anel nem de pássaro para voar sozinho acima da quietude das nuvens.
E quando esse dia chegar, deve dar seu presente a alguém que saiba que irá usá-lo bem, alguém que possa aprender que as coisas que importam são as feitas de verdade e alegria, não as de lata e vidro.

Rae, este é o último dia especial de comemoração a cada ano que estarei com você, tendo aprendido com os nossos amigos, os pássaros.
Não posso ir ao seu encontro porque já estou com você.
Você não é pequena porque já é crescida, brincando entre suas vidas como todos fazemos, pelo prazer de viver.
Você não tem aniversário porque sempre viveu; nunca jamais haverá de morrer. Não é a filha das pessoas a quem chama de mãe e pai, mas a companheira de aventuras delas na jornada maravilhosa para compreender as coisas que são.
Cada presente de um amigo é um desejo de felicidade.
É o caso do anel.

Voe livre e feliz além de aniversários e através do sempre.

Haveremos de nos encontrar outra vez, sempre que desejarmos, no meio da única comemoração que não pode jamais terminar.

Fonte: Instituto de Pesquisas Psíquicas Imagick

Gente com rosa na lapela


por Max Lucado

John Blanchard levantou-se do banco, ajeitou o uniforme do Exército e observou a multidão que tentava abrir caminho na Estação Ferroviária Central de Nova York.
Procurou avistar a moça cujo coração ele conhecia, mas não o rosto - a moça com a rosa. Seu interesse por ela começara treze anos antes, em uma biblioteca da Flórida.
Ao retirar um livro da estante, ele ficou intrigado, não com as palavras impressas, mas com as anotações escritas à mão na margem. A letra delicada indicava ser a de uma pessoa ponderada e sensível. Na primeira página do livro, ele descobriu o nome da proprietária anterior: Srta. Hollies Maynell.
Depois de algum tempo e de várias tentativas, conseguiu localizar o endereço dela. Morava em Nova York. Escreveu-lhe uma carta apresentando-se e propondo uma troca de correspondência. No dia seguinte, ele foi convocado para servir em uma base do outro lado do oceano. Era a Segunda Guerra Mundial. Durante os treze meses seguintes, os dois passaram a se conhecer por correspondência. Cada carta era uma semente caindo em um coração fértil. Florecia um romance.
Blanchard pediu uma fotografia, mas ela recusou-se a enviar. Achava que, se ele realmente gostasse dela, não haveria necessidade da fotografia.
Quando ele retornou da Europa, marcaram o primeiro encontro às 19 horas na Estação Ferroviária Central de Nova York.
"Você me reconhecerá", ela escreveu, "pela rosa que estarei usando na lapela." Assim, às 19 horas, Blanchard estava na estação à espera da moça cujo coração ele amava, mas cujo rosto nunca vira.
Deixemos que o próprio Blanchard conte o que aconteceu.

...

Em minha direção vinha uma jovem alta e esbelta. Seus cabelos loiros encaracolados caíam pelos ombros, deixando à mostra delicadas orelhas; os olhos eram azuis da cor do céu. Os lábios e o queixo tinham uma firmeza suave; trajando um costume verde-claro, parecia a própria chegada da primavera.
Comecei a caminhar em sua direção sem notar que não havia rosa em sua lapela.
Quando me aproximei, um sorriso leve e provocante brotou-lhe nos lábios.
- "Gostaria de me acompanhar, marujo?" ela murmurou.
De maneira quase incontrolável, dei um passo em sua direção, e foi então que avistei Hollies Maynell. Ela estava em pé atrás da jovem. Aparentava bem mais de quarenta anos, e seus cabelos, presos sob um chapéu surrado, deixavam entrever alguns fios brancos. Seu corpo era roliço, tinha tornozelos grossos e usava sapatos de salto baixo.
A moça de costume verde-claro distanciava-se rapidamente. Senti-me dividido, desejando ardentemente segui-la, mas ao mesmo tempo, profundamente interessado em conhecer a mulher cujo entusiasmo me acompanhara e me sustentara. E lá estava ela. Seu rosto redondo e pálido estampava delicadeza e sensibilidade; os olhos cinzentos irradiavam meiguice e bondade. Não hesitei. Peguei o pequeno livro azul, de capa de couro, para me identificar. Não seria um caso de amor, mas poderia ser algo precioso, algo talvez melhor que amor, uma amizade pela qual eu era e seria eternamente grato.
Endireitei os ombros, cumprimentei e entreguei o livro à mulher, apesar de sentir-me sufocado pela amargura do meu desapontamento enquanto lhe dirigia a palavra.
- "Sou o Tenente John Blanchard, e você deve ser a Srta. Maynell. Estou satisfeito por você ter vindo encontrar-me. Aceita um convite para jantar?"
No rosto da mulher surgiu um sorriso largo e bondoso. -"Não sei do que se trata, filho", ela respondeu, "mas a jovem de costume verde, que acabou de passar por aqui, pediu-me que usasse esta rosa na lapela e instruiu-me também que, se você me convidasse para jantar, eu deveria dizer que ela está à sua espera no restaurante do outro lado da rua. Ela me contou que se tratava de uma espécie de teste!"

Notas:
Traduzido por Maria Emília de Oliveira
Extraído de And The Angels Were Silent
© 1992 de Max Lucado

Fonte: irmãos.com

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Saudades da Vila


Por Edla van Steen

Quando nos conhecemos Heitor era mais alto do que eu uns dez centímetros. Tínhamos mudado recentemente para a mesma vila e as casas da rua do Ouro foram no início iguais: sobrados geminados com pequeno jardim na frente, onde minha mãe esforçava-se para manter vivos vários pés de hortênsias. Depois, aos poucos, as moradias iam sendo individualizadas por cores diferentes.

Vivíamos mais na calçada do que dentro de casa e, dependendo do horário, sabíamos quem estava à nossa espera, no meio-fio. O que era muito gostoso. Vistos de cima, de algum, prédio, devíamos compor uma estranha mancha parada, ao lado de todos aqueles pontos irrequietos, nossos inúmeros irmãos a andar de bicicleta ou a jogar bola. Formávamos um grupo de seis pessoas da rua e algumas avulsas da vizinhança. Os começos de noite eram os melhores momentos, a conversa espichada até o instante supremo em que exigiam o nosso recolhimento.

O mundo se resumia, para mim, naquele local. Eu me sentia parte integrante dele, um paralelepípedo, um canteiro ou coisa no gênero. Não me importava de dividir o quarto com a vovó, os manos menores no outro, meus pais no terceiro, nem com a fila diária para usar o banheiro, único.

Minha melhor amiga chamava-se Neide. Morava na casa cinco, em frente à nossa, se bem que fosse difícil uma definição sobre isso, tanto atravessávamos a rua por dia. Era a confidente, a colega de classe, a conselheira: usávamos idêntico tipo de roupa, uma emprestando para a outra, e gostávamos das músicas dos Beatles, que ouvíamos em noites chuvosas na casa do Heitor, pois o pai dele trabalhava como gerente de um restaurante.

Aos domingos íamos a matinê no cine Ópera, nas redondezas. As meninas sentavam-se logo, bem na frente, mas os garotos davam, muitas voltas pelos corredores. Era um cinema pequeno, com as cadeiras de madeira repletas de inscrições feitas a canivete, a chave, ou sei lá a quê. Anualmente, o proprietário mandava lixar e envernizar tudo. Uma pena, perdia-se a distração da leitura. A medida que a gente crescia, sentava, ou melhor, deitava mais para trás. Nas cadeiras daquele cinema Heitor pegou na minha mão pela primeira vez. Ali nos tornamos os primeiros namorados do grupo, que depois foi aumentando em número de casais, Neide e Ozório, Isabel e João, assim por diante.

Até que meu pai chegou com a terrível notícia: íamos embora da cidade porque ele fora promovido e devia ficar um ano no interior, tomando conta de uma filial da firma. Chorei, bati o pé, fiz o diabo. A situação era irreversível. Antes que eu completasse quatorze anos, as despedidas da vila e da turma foram feitas em meio à imensa tristeza. Não adiantavam as promessas de retorno nas férias que, afinal, jamais aconteceriam, nem a certeza da transitoriedade da mudança. "Doze meses passam rápido" — mamãe argumentava — talvez querendo convencer-se a si própria, pois ela igualmente sofria com a viagem. Perderia o joguinho das quintas-feiras na vizinha e toda aquela série de hábitos adquiridos como a costureira Anália, o verdureiro da esquina, que pendurava as compras, a feira, detalhes imprescindíveis para o seu sossego de dona-de-casa.

Porém exclamou entusiasmada diante da futura moradia: maior, bem localizada, um espaçoso quintal com duas jabuticabeiras enormes. Estivesse o bando por perto, seria perfeita. Sem eles — de que valia tanto luxo? Ganhei, inclusive, um quarto só para mim, móveis novos e uma vitrola. E continuava desconsolada, escrevendo sem parar. Heitor respondia jurando sentir 1ninha falta, paixão eterna etc. Com o tempo a correspondência diminuiu, parou completamente. Nem a Neide mandava notícias. O consolo era freqüentar o clube, que acabou por me inscrever no concurso de miss. Confesso que aceitei a disputa esperançosa de ganhar para as finais: teria chance de visitar a vila. Papai prosperava no interior e não falava em voltar. Nem mamãe, que dava incrível valor à melhora do nosso padrão social.

Perdi a eleição por injustiça do júri e, com ela, a oportunidade de rever meus queridos amigos. Papai comprou a filial da firma e estava feliz da vida quando morreu, de enfarte. Aí, mamãe e eu fomos trabalhar na loja. A família nunca mudaria de lá.

A imagem da vila foi se apagando, eu não conseguia ver na memória os rostos da turma. Restava apenas a impressão da perda de algo essencial, não modificada pelos inúmeros namorados, nem pelos amigos atuais.

Então, ao completar vinte e cinco anos, pedi de presente umas férias para rever a vila e, em especial,
Heitor.

Preparei um guarda-roupa como se fosse para a Europa, tamanho o capricho, antegozando o efeito que eu causaria com meu um metro e setenta de altura.

Ansiosa, distraída, cheia de ternura, peguei sozinha a estrada que me levaria ao romântico encontro.

Primeiro iria à vila ou à casa da titia? O certo é que com aquele nervosismo, devia parar de fazer planos e prestar o dobro de atenção ao trânsito, do contrário estragaria meu lindo carrinho novo.

Bem, cheguei atrasada: aos sábados as estradas são intransitáveis. Tia Aurora não cabia em si de contentamento. Sair? De jeito nenhum. Espere o Evandro. Ele vai ficar bobo. Enquanto meu primo não entrasse pela porta a dentro, eu não podia arredar dali. Ele demorou à beça, terminei dormindo no sofá da sala.

Na manhã seguinte levantei cedo, animadíssima. Deixei um bilhete no qual prometia vir para jantar. Queria o dia inteiro livre. Comprei flores para a Neide, sonhos-de-valsa para o Heitor e estacionei o carro longe, para que ninguém visse. Fui andando em direção à rua do Ouro, bastante decadente, diga-se de passagem, as casas inacreditavelmente sujas, quase em ruínas. A nossa, estava tão encardida que doía. Das hortênsias, nem vestígios. E a da Neide acompanhava o resto. Senti um aperto no coração, juro. O cenário era mesmo deprimente. (Mal sabia eu o que ainda me esperava!)

Neide me recebeu com um grito de satisfação. Levei um susto quando me empurrou, sem delicadeza, para o sofá. Ela devia estar pesando mais de cem quilos, pensei horrorizada. Entreguei o maço de flores aparentando a maior naturalidade, como se não tivesse reparado na gordura. Neide agradeceu e apertou minha mão com força. Bufando, pelo esforço de se levantar, dirigiu-se para a cozinha. Como era possível que ela, magrinha daquele jeito, se transformasse tanto? Voltou com um vaso onde pusera o maço sem soltar o cordão que amarrava os talos. Horrível. E o pessoal? — perguntei. Dormindo, jogaram buraco até altas horas. Quer que acorde eles? Insisti que não, a visitinha era rápida, não valia a pena e ainda desejava rever o resto dos amigos. Neide contou, rindo: Ozório fugiu de casa há muito tempo e sumiu no mundo; Isabel casou com um argentino, João é tenente do exército, vem raramente à vila. E Heitor? —arrisquei. Está por aí. Ele vai adorar ver você. Sempre diz que foi a grande paixão da vida dele e, se alguém duvida, mostra a quantidade de cartas que recebeu — sacudiu o corpo, maliciosamente. O que era pouco delicado: ninguém merecia conhecer as besteiras que eu, na fossa, tinha escrito. Fiz mais algumas perguntas enquanto ela servia pudim de chocolate, àquela hora da manhã, credo. De repente, percebi: a amiga, que eu tanto queria encontrar, desaparecera. Mantinha o rosto aberto, o ar de franqueza, mas uma certa ironia ou amargura, não sei, tolhia qualquer aproximação. Éramos duas desconhecidas, essa é a verdade. Dali a pouco me retirei, ouvindo Neide pedir que voltasse uma tarde dessas para um papo comprido. Dei um adeusinho, do meio da rua. Venho sim.

Fosse mais intuitiva, não teria ido bater à casa de Heitor, bem cuidada, aliás. A fachada exibia, agora, porta e janelas coloniais. Um leão branco, de louça, sorria para mim, na entrada, e uma trepadeira esquisita, que eu não conhecia, subia pelas paredes ocres. Se eu tivesse compreendido a tempo todas aquelas alterações em Neide e na vila, nos onze anos de ausência, é possível que desistisse de outras curiosidades. Mas, naquele momento, não possuía nada de bom-senso. Ninguém provocava em mim o afeto e o carinho sentidos por Heitor. Natural, portanto, que eu apertasse a campainha. Um garoto passou correndo e berrando, os fundilhos rasgados. Em algum lugar, Sílvio Santos cantava com o auditório um daqueles horrendos anúncios. Onde estaria Heitor? A velha, sentada num banquinho, na calçada, fez sinal para que eu insistisse. Toquei a campainha pela terceira vez. Alguém abriu a porta. Tive que sufocar um grito de horror. Aquilo era demais para a minha estrutura emocional. Vou descrever exatamente o que vi antes de entender quem era a figura grotesca que me atendeu: vi um homem muito baixo, de um metro e cinqüenta mais ou menos, de robe de seda vermelha, sapatos de salto alto prateados e de batom nos lábios. O Heitor está? — a frase escapou quando nos reconhecíamos, quase que instantaneamente. Marina, que surpresa, entre! Desculpe os trajes. Fique à vontade — falei, pálida, uma taquicardia insuportável. Estou fazendo café, ele disse, quer um? Aceitei e ouvi o som do salto ploc ploc se afastando. O que significava tudo aquilo? Tive a impressão de ouvir cochichos e depois passos furtivos, de alguém se escondendo.

Heitor me ofereceu a xícara e sentou-se cruzando as pernas. O batom havia desaparecido. Confesso que de todas as novidades a que mais me intrigou foi a altura dele. Não alcançaria os meus ombros com salto e tudo. Como podia ter parado de crescer? Anormal eu que espichei tanto ou ele, que estacionou.

Comecei a falar sem descanso. Heitor fazia gestos absolutamente teatrais: ora levantava o braço e apoiava-se na cabeça, ora esticava-o em direção à janela e, ficando de perfil para mim, admirava as unhas, ou então, cruzava e descruzava as pernas, movimentando o corpo como se estivesse posando para alguma fotografia. Contei minúcias da família, da cidade, da loja, evitando formular qualquer questão que provocasse confidências.

O telefone tocou e ele atendeu, de pé. Aguardei, olhos no chão, que terminasse a conversa. Eu me sentia tão cansada. Alguns minutos de trégua foram importantes para que entendesse toda a minha decepção. Estava a ponto de arrebentar de choro.

Daí me ocorreu fugir. Chorar, não! — bati a porta com violência. Para mim, chega.

Ao procurar a chave do carro na bolsa, notei que ainda guardava comigo os sonhos-de-valsa.


O texto acima foi publicado em "Antes do amanhecer" e extraído do livro "Melhores Contos de Edla van Steen", seleção e prefácio de Antônio Carlos Seccin, Global Editora — São Paulo, 2006, pág. 253.

Edla van Steen nasceu em Florianópolis, Santa Catarina, em 1936. Seu pai era belga e cônsul-honorário naquela cidade. Tem 25 livros publicados, entre contos, romances, entrevistas, peças de teatro, livros de arte. A escritora é casada com o historiador e crítico teatral Sábato Magaldi.

Um amor, uma cabana


Ana Miranda

Nossos pais diziam que para nos tornar seres completos era preciso escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho. Meu pai, que era engenheiro, acrescentava: construir uma casa. Escrevi livros, até demais, tenho um filho e plantei uma árvore, no jardim da casa onde cresci, uma muda de pau-rosa, ou flor-do-paraíso, que havia sido esquecida ao lado de uma cova estreita e funda, uma muda frágil, com poucas folhas, mais alta do que a menininha que a salvou. A muda cresceu, transformou-se em um majestoso flamboyant, coberto de flores vermelhas.

Mas nunca construí uma casa. Sonho com isso. Gostaria de construir uma casa de taipa, com as próprias mãos, amassar o barro, atirar o barro nos enxaiméis e fasquias de madeira. Não se trata de uma idiossincrasia, nem de um gesto poético, muito menos uma visão religiosa. A taipa é um material apaixonante. Tem uma nobreza histórica. As reforçadas casas e igrejas coloniais brasileiras foram feitas de taipa de pilão, há ainda hoje na Alemanha casas em taipa construídas no século 13, a própria muralha da China, símbolo da solidez, é taipa. A taipa tem mais de 9.000 anos, serviu a construções no Egito, na Mesopotâmia.

Um amigo meu, arquiteto, projetou e construiu belíssimas casas de taipa. Ele se chama Cydno da Silveira e o conheci em Brasília, poucos anos depois de plantar meu flamboyant. Cydno estudava na UnB quando, observando residências rurais, surpreendeu-se com a quantidade de casas de taipa, feitas de maneira intuitiva, quase como as abelhas fazem suas colméias. Nunca tinha ouvido falar naquilo em seu curso, e percebeu o quanto era elitista o ensino de arquitetura. Fotografou as casas de taipa todas que encontrava. Ele se formou, passou a trabalhar com as técnicas industriais, como concreto armado, mas nunca esqueceu a taipa. Deu-se conta de que não sabia construir da maneira mais rudimentar e resolveu aprender. Estudou durante anos a técnica. Descobriu taipas diversas, como a de pedra, usada no Piauí, a de madeira com bolas de barro, vista no Maranhão, a taipa de carnaúba, a taipa mista de moldura de tijolos, a taipa feita com sobras de madeira e sucata. Descobriu a maleabilidade incrível do barro, novas estruturas, novos dimensionamentos do espaço e imensas possibilidades de melhoria na técnica tradicional. Estudou a combinação com elementos da cultura industrial, mas sem descaracterizar a antiga construção de estuque.

A casa de taipa nasce do chão, vem da natureza, é construída com o material que está ali, a terra e as árvores e tem uma grande contribuição a dar a um país que não oferece moradia para todos, como o Brasil. O projeto de casas populares, que Cydno afinal desenvolveu, ensina o homem a construir sua própria casa e a cuidar dela. Tem o sentido de manter viva a sabedoria popular da taipa. Está sendo feita uma experiência na cidade de Bayeux, Paraíba, para treinamento de pessoas no projeto, construção, melhoria e restauração de edificações em taipa de pau-a-pique. Não recebendo a casa pronta, mas construindo-a, o dono toma por ela mais amor. Se for privado de sua terra, ele saberá construir uma nova habitação. O saber lhe pode servir como meio de vida, e a profissão tem um nome: taipeiro.

A casa de taipa é uma grande alternativa para a habitação no meio rural e nas periferias urbanas. Típica das populações mais pobres, é uma forma de independência, uma estratégia milenar de abrigo, preservada nos sertões brasileiros especialmente pelas mulheres. O sistema de autoconstrução elimina a aquisição de material, o transporte, o crédito, elimina o BNH e o processo industrial de construção, permite o mutirão e, principalmente, educa. É rápida a construção, usa-se mão-de-obra não qualificada, e é um instrumento para a posse imediata da terra. Permite uma construção tanto de caráter provisório quanto perene e a técnica pode ser levada a lugares onde não chega o material industrializado. Uma simples caiação evita a umidade e basta fechar as frestas onde o barbeiro gosta de fazer seu ninho. Integra a família, as mulheres e as crianças trabalham na construção e integra o grupo na sociedade quando em regime de mutirão. Apesar de tudo isso é completamente ignorada pelos meios administrativos, considerada subabitação, não há nem mesmo linha de crédito nos órgãos do governo para casa de taipa. Marcos Freire, antes de morrer, estava tratando de corrigir esse lapso. Nas esferas “civilizadas” há dificuldade em compreender a taipa. Não há legislação nem a favor nem contra. Quando da construção de Carajás, Cydno realizou um projeto de moradias em taipa de pau-a-pique para os empregados, utilizando o fartíssimo material do lugar. Seu projeto não foi aceito e os tijolos, o cimento e o ferro viajaram de avião até Carajás.

Na taipa não há desperdício de material e nem agressão ecológica, a madeira usada nas estruturas é em quantidade cinco vezes menor do que a necessária na queima de tijolos para uma parede das mesmas dimensões. “A tomada de consciência ecológica, surgida como uma ponte de luz no extremo mais estreito do túnel da crise de energia, vai servindo para provar-nos que nem sempre o habitat humano está condenado a ser feito de concreto, aço e vidro. Assim, quando tudo em arquitetura parecia dirigir-se para uma negação sempre maior da natureza que volta a oferecer uma saída diante das agruras da crise. E o faz com aquilo que lhe é primeiro e essencial, a terra, o elemento mais fecundo de tudo o que nos cerca”, escreveu o arquiteto Roberto Pontual.

Quando, nos anos 1930, Lúcio Costa projetou uma vila operária, em Monlevade, toda em taipa de pau-a-pique, escreveu: “...faz mesmo parte da terra, como formigueiro, figueira-brava e pé-de-milho – é o chão que continua... Mas justamente por isso, por ser coisa legítima da terra, tem para nós, arquitetos, uma significação respeitável e digna, enquanto que o pseudomissões, ‘normando ou colonial’, ao lado, não passa de um arremedo sem compostura”. E aconselha: devia ser adotada para casas de verão e construções econômicas de um modo geral. É uma técnica muito mais barata, atende aqueles casais remediados que desejam uma casinha de campo. O projeto de Lúcio Costa, claro, não foi aceito pela Belgo Mineira.

O Cydno vai projetar a minha casa de taipa. Vou querer na casa uma lareira, um fogão a lenha e uma vassoura daquelas de gravetos. Uma árvore frondosa por perto, pode ser flamboyant, um gramado na sombra para piquenique, contemplação ou leitura. Também dizia meu pai, nas coisas mais simples está o sentido da vida.


Ana Miranda nasceu em 1951 em Fortaleza, Ceará. Parte de sua infância e juventude passou em Brasília (1959/1969) morando no Rio de Janeiro desde então. Sua vida literária teve início em 1978 com a publicação de um livro de poesias. Seu primeiro romance, "Boca do Inferno", foi publicado em 1989, obra que já foi traduzida nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Espanha, Suécia e Holanda, entre outros países. Recebeu o Prêmio Jabuti de Revelação em 1990. Escreve roteiros cinematográficos, ensaios e resenhas críticas para jornais e revistas, além de realizar palestras em universidades e outras instituições.

Encontro


Por Ana Miranda

No dia em que nos conhecemos na casa de uma amiga na praia ela nos apresentou, Fulana, Fulano, e ele não disse nada, nem "Como vai", nem "Muito prazer", nem nada, não estendeu a mão e virou de costas para mim, puxou uma cadeira e sentou de costas para mim, todo mundo reparou, aquele silêncio, minha amiga ficou perplexa com a falta de educação, ela me tirou dali de trás dele, uma situação constrangedora, ela murmurou: "Ele é um sujeito temperamental". Não entendo seu comportamento. Nunca vi isso antes. Não consigo compreender, depois veio uma empregada da casa e ele levantou da cadeira e beijou a mão da empregada como se ela fosse uma condessa, e pensei: "Será que ele está querendo dizer que respeita os pobres e despreza os ricos?" Se for assim, está perdoado, não pude tirá-lo da cabeça; ele me hostilizou a tarde toda, e quanto mais ele me hostilizava mais eu o odiava e quanto mais o odiava mais pensava nele, era um mistério seu desprezo por mim, não fazia sentido, pensei nele até o fim da tarde; e fomos embora para nosso hotel; no carro ele conversou com o chofer e não disse uma só palavra para mim, nem se virou para trás uma só vez, apenas disse um "Adeus" seco quando saltei do carro, como se eu o incomodasse, e ele se despediu gentilmente dos outros convidados sorrindo e desapareceu, entrei disfarçando

as lágrimas e não pude tirá-lo da minha cabeça, de noite ouvi uma batida na porta do meu quarto no hotel e abri a porta pensando que era a arrumadeira ou o garçom, mas era ele, estava vestido de terno com uma flor na lapela, perfumado, os cabelos molhados, dessa vez ele estendeu a mão e me olhou nos olhos sem nenhum desprezo, o que me deixou ainda mais intrigada, e ele me convidou para jantarmos juntos, os outros haviam saído, éramos só nós dois no hotel, fazia sentido que jantássemos juntos, fomos caminhando até a praia, ele estava gentil, reverente, quase tímido, fazia perguntas e falava apenas de mim, sentamos no restaurante à beira da praia, ele pediu champanhe, fez um brinde. Ao nosso encontro, levantei sem esperar a comida e voltei sozinha para o hotel, caminhando pela praia, mas não conseguia tirá-lo da minha cabeça.

Ana Miranda nasceu em 1951 em Fortaleza, Ceará. Parte de sua infância e juventude passou em Brasília (1959/1969) morando no Rio de Janeiro desde então. Sua vida literária teve início em 1978 com a publicação de um livro de poesias. Seu primeiro romance, "Boca do Inferno", foi publicado em 1989, obra que já foi traduzida nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Espanha, Suécia e Holanda, entre outros países. Recebeu o Prêmio Jabuti de Revelação em 1990 e o de Literatura em 2003. Escreve roteiros cinematográficos, ensaios e resenhas críticas para jornais e revistas, além de realizar palestras em universidades e outras instituições.

Texto extraído do livro "21 histórias de amor", Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro, 2002, pág. 135.

Zoiúda

Por Luiz Vilela

Zoiúda... Foi numa noite que ele conheceu Zoiúda. Foi numa noite — e nem poderia ser de outra forma, já que, como as prostitutas e as estrelas, as lagartixas também são seres da noite e só nela ou de preferência nela se mostram- que ele a viu pela primeira vez.

Era uma sexta-feira, ele tinha acabado de chegar da rua: quando se aproximou da talha para tomar um copo d'água, lá estava a lagartixa, na parede, perto do vitrô que dava para a área de serviço do apartamento onde morava, no décimo andar. Era esbranquiçada, um pouco mais cabeçudinha que o comum e quase rabicó. Mas foram os olhos, foram os olhos o que mais lhe chamou a atenção: exorbitados, duas bolinhas brilhantes, parecendo duas miçangas. Observou-a mais um pouco, acabou de tomar a água e, o corpo pedindo cama depois dos muitos copos de chope, ele foi dormir.

Na noite seguinte — de novo o bar, de novo as conversas e as bebidas, conversas e bebidas que só serviam para matar o tempo e para matar dentro dele alguma coisa que ele não sabia bem o quê, mas que sabia ser essencial —, ao chegar em casa, acender a luz da cozinha e se aproximar da talha, viu de novo a lagartixa, quase no mesmo lugar da véspera. Sim, era ela, ele não tinha a menor dúvida, apesar de estar meio de porre: ali estava o toquinho de rabo, ali estavam os olhos, os olhos desmedidos. "Zoiúda", disse, como que batizando-a. Nela, nenhuma reação, a não ser, pareceu-lhe, estatelar mais ainda os já de si estatelados

olhos. E ficaram os dois novamente se olhando, ele pensando se haveria naquela cabecinha algo como o pensamento, algo que...

Na terceira noite, domingo, o mesmo bar e os mesmos amigos e as mesmas conversas e bebidas, ele, num momento de quase convulsivo tédio ("isso mesmo", se diria depois, "convulsivo tédio"), lembrou-se de Zoiúda, isolando-se por alguns minutos do ambiente ao redor, um leve sorriso lhe aflorando aos lábios. "O que foi?", perguntou a amiga que estava a seu lado, na mesa. "Estou me lembrando da Zoiúda", ele respondeu. "Aquela dos nossos tempos de faculdade?", perguntou a amiga. "Não", ele disse, "é outra; essa eu acho que nem chegou a prestar o vestibular...".

"Zoiúda, Zoiudinha", disse em voz alta, depois de entrar em casa e acender a luz. Como em quase todas as noites, foi direto à cozinha. Mas... Zoiúda não estava lá. Não estava. Ficou meio decepcionado. Tinha certeza que... Chamou-a, uma vez, duas, três, esperando que ela, ouvindo sua voz, aparecesse, vinda lá de fora, da área ou até do paredão do prédio; mas ela não apareceu.

"Essas mulheres... A gente não pode mesmo confiar..." Aliás aquela, ele pensou, não só mulher não era, como talvez nem fêmea fosse, pois lera uma vez que nas espécies animais o macho quase sempre tem a cabeça maior; além disso, a cauda... A cauda, a cabeça e tinha



ainda mais alguma coisa, alguma coisa que ele até agora, de manhã, no carro, estava tentando lembrar, enquanto se dirigia para a escola (uma escola pública num dos bairros mais longes da capital, onde dava aulas de português para um bando de adolescentes desinteressados e distraídos). Não, não lembrava; podia desistir. Mas também, diabo, que importância tinha aquilo? Nenhuma, nenhuma importância.

"Apareceu uma lagartixa no meu apartamento", contou, no intervalo. "Uma?", o colega admirou-se. "Pois lá em casa, uma ocasião, tinha umas 300. Mas aí eles me ensinaram um veneno, e eu pus: não ficou uma só para contar a história. Se você quiser, eu posso te passar o nome”. "Eu tenho pavor", confessou a colega, "eu tenho pavor de lagartixa. Se eu souber que tem uma dentro de casa, eu simplesmente não durmo. Uma vez eu quase telefonei chamando o Corpo de Bombeiros, vocês acreditam?". "Acho que eu sou meio maluco", ele disse, "acho que eu sou mesmo meio maluco" — mas nenhum dos dois estava mais prestando atenção nele.

À noite, naquela plena segunda-feira, ele não saiu, substituindo o bar pela TV — a mesmice pela idiotice, pensou. Sentou-se só de short (era outubro, um calorão danado), acomodou-se na poltrona da sala, pegou o controle remoto e ligou a televisão. Algum tempo depois, ao sentir sede, foi até a cozinha e... "Zoiúda!", exclamou, com a alegria de um menino, "você está aí!...". Estava; ali estava ela de novo, próximo à talha, e, como sempre, permaneceu impassível — ou lá dentro, àquela hora, o minúsculo coração também estaria batendo um pouquinho mais forte?...

O certo é que, entre aparições e desaparições, entre o atento silêncio dela e as peremptórias declarações dele — "Zoiúda, tirando minha mãe, você é a única criatura que eu amo hoje no mundo" —, Zoiúda passou a ser para ele uma... uma espécie de companhia. Afinal, num apartamento onde havia somente ele de gente e onde, por dificuldade em criá-los, não havia cachorro, gato ou passarinho, ela era uma presença, um ser vivo a quem ele podia dirigir a palavra, embora não houvesse resposta — mas para que resposta? Não queria resposta. Queria apenas falar. Apenas isso. "Né, Zoiúda?”

E assim, como nas histórias antigas, foram se passando os dias. Até que, tendo de fazer uma viagem e se ausentar por uma semana, ao voltar, ele não viu mais Zoiúda. Partira para outras bandas? Morrera? Ele não sabia. O fato é que não a viu mais, em nenhuma noite.

Sentiu falta dela? Imagine; imagine um homem sentir falta de uma lagartixa... Claro que ele não sentiu. Mas sentiu — tinha de admitir — que aquele apartamento ficara um pouco mais vazio e aqueles fins-de-noite um pouco mais tristes.


Texto extraído do caderno “Mais!”, de 24/11/2002, publicado pelo jornal “Folha de São Paulo” – São Paulo, pág. 12

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